Um documentário assinado pelos pernambucanos Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, respectivamente diretor e roteirista de Baile Perfumado e Árido Movie (Hilton também assina o roteiro dos filmes de Claudio Assis), dificilmente passaria perto de algo convencional. Por isso, quem for ver Cartola – Música Para Os Olhos esperando uma cinebiografia mais comportada pode se decepcionar.
O coro dos descontentes ganhou força na edição de 07.04.2006 do jornal O Globo, quando o respeitável crítico de música João Máximo diz que Cartola é uma sucessão de equívocos (curiosamente, o Jornal do Brasil também escalou seu soberano em música, Tárik de Souza, para resenhar o filme na Revista Programa - Tárik adorou Cartola). O incômodo de João Máximo revela intolerância com o experimentalismo dos realizadores, e o pior, preconceito, quando ele escreve que “os dois moços que assinam direção e roteiro” talvez não conheçam a história do sambista. Ao se referir a Lírio e Hilton como “os dois moços”, Máximo os desautoriza a falar sobre Cartola por serem jovens, um preconceito típico da velha guarda de críticos. Em outro trecho, desqualifica os “intelectuais da Zona Sul” que analisam as composições de Cartola (quem seriam os “intelectuais da Zona Sul”? O antropólogo Hermano Vianna, autor do interessantíssimo estudo literário O Mistério do Samba? Cacá Diegues? Nelson Motta?).
Por fim, João Máximo diz que “a desinformação é total”, para logo depois se mostrar totalmente desinformado ao afirmar que “Há uma cena de Orfeu do Carnaval, que os créditos insistem em chamar de Orfeu Negro, em que Cartola, o ator, é assassinado, mas o espectador desavisado fica sem saber do que se trata”. Os dois equívocos de João Máximo: 1) o título original de Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus, é Orfeu Negro, e só nos cinemas brasileiros a palavra Carnaval aparecia no título. Em vídeo e DVD ele se chamou Orfeu Negro, portanto os créditos do filme estão corretos; 2) a cena em que Cartola, o ator, é assassinado, não é de Orfeu Negro (ou Orfeu do Carnaval, como ele prefere), mas do episódio Papo Amarelo, do filme Os Marginais, dirigido por Moises Kendler.
Mas o fato é que pouco importa de onde vem cada cena ou o título dos inúmeros filmes que Lírio e Hilton utilizaram para ilustrar a vida de Cartola. Eles estão ali numa colagem criativa e coerente com o espírito vibrante e inquieto do mangue beat, movimento cultural surgido em Pernambuco nos anos 90, que teve como expoente máximo o músico Chico Science. É dentro dessa filosofia que os realizadores de Cartola tomam a liberdade de usar uma cena de Brás Cubas, de Julio Bressane, em que um microfone percorre uma caveira, para não só dar voz ao cadáver de Cartola como estabelecê-lo como um legítimo sucessor de Machado de Assis em sua importância para a cultura carioca e brasileira.
É preciso estar desprovido de expectativas e preconceitos para aceitar que, no momento em que o filme trata do Cartola mulherengo, a passagem seja ilustrada por cenas de Rio 40 Graus e da chanchada Aviso Aos Navegantes, de Watson Macedo, com José Lewgoy e Oscarito dialogando. O que isso teria a ver com Cartola? Nada, é apenas uma liberdade poética para ilustrar um trecho do filme que fala de um mulherengo. Para entrar no filme, o espectador tem que embarcar na viagem dos realizadores. Uma viagem que pode render momentos de pura poesia: quando se fala do período em que Cartola sumiu do mapa, a cena começa com imagens feitas de dentro de um carro em movimento; de repente um túnel se aproxima e a tela fica preta, deixando o espectador olhando para o escuro e apenas ouvindo uma série de vozes não identificadas, que, em frases curtas, especulam o que teria acontecido com Cartola.
Outra ótima sacada de Lírio e Hilton: uma foto histórica de Cartola e amigos no bar Zicartola é suficiente para, quase sozinha, ilustrar uma execução inteira da canção Peito Vazio. Como eles fizeram isso? A câmera passeia inquieta pela foto, se fixando nos diversos personagens, exatamente como o olho humano faria ao observar o retrato.
O documentário não é feito apenas de colagens de imagens de arquivo, embora elas sejam o que de mais valioso e original o filme oferece. O Morro da Mangueira aparece pela primeira vez com um grupo cantando um de seus sambas. A câmera sai dali e vai encontrar uma favela que ainda preserva o velho salão de barbeiro, a vendinha, as crianças brincando com carrinho de rolimã – como nos tempos de Cartola. E o que dizer de Nelson Sargento cantando Ciência e Arte ao violão, com a bandeira da Estação Primeira atrás? É de arrepiar até o mais renhido dos portelenses.
Cartola – Música Para Os Olhos pode não ser a biografia definitiva de Cartola e da história do samba, mas a trajetória pessoal e musical do compositor está quase toda lá, sem se deter em detalhes. A curiosidade mórbida de muita gente acerca de seu nariz, por exemplo, é apenas parcialmente saciada. “Foi uma cirurgia plástica que deu errado”, explica sua neta. Pra que saber mais?
Graças a um árduo processo de pesquisa e com consultoria de Elton Medeiros, parceiro de Cartola em O Sol Nascerá e autoridade em samba acima de qualquer suspeita, os diretores conseguiram repassar, através da vida e obra de Cartola, quase um século da História do Brasil sem vestígios de ranço acadêmico, com uma trilha sonora de qualidade incomparável. Lírio e Hilton mostraram que com uma boa idéia na cabeça não é preciso exibir samba no pé.
CARTOLA – MÚSICA PARA OS OLHOS
Brasil, 2006
Direção e roteiro: LÍRIO FERREIRA e HILTON LACERDA
Montagem: MAIR TAVARES, RODRIGO LIMA, LESSANDRO SÓCRATES
Produção: CLELIA BESSA, HILTON KAUFFMANN
Consultoria: ELTON MEDEIROS
Pesquisa: BETH FORMAGINI, ROBERTO AZOUBEL, WANDA RIBEIRO
Direção de arte: CLAUDIO AMARAL PEIXOTO
Duração: 88 minutos