Críticas


OS MISERÁVEIS

De: LADJ LY
Com: DAMIEN BONNARD, ALEXIS MANENTI, DJIBRIL ZONGA, ISSA PERICA, JEANNE BALIBAR
31.01.2020
Por João de Oliveira
Um uppercut em pleno queixo da sociedade francesa

Uma vez que assistimos aos dois filmes, fica mais fácil entender por que Alejandro Gonzáles Iñarritu preferiu dividir o prêmio do júri que ele presidiu entre Bacurau e Os Miseráveis. Ambos possuem um plot bastante parecido. Uma comunidade é invadida por estranhos e decide reagir. Os parcos pontos de convergência param por aí. O primeiro é um filme de antecipação extremamente alegórico, enquanto o segundo é um filme épico muito realista e discursivo que possui uma estética muito próxima do documentário. Ambos, miltantes, são muito necessários neste momento em que o mundo parece rejeitar o legado racionalista e humanista dos iluministas para ressuscitar o que havia de pior na Baixa Idade Média.

Os Miseráveis narra dois dias do cotidiano de três policiais da BAC (Brigada Anticriminalidade) que policiam a “cité” (condomínios habitacionais para estrangeiros e/ou franceses desfavorecidos e oriundos da imigração) de Montefermeuil, localizada no leste parisiense, não muito  longe da capital. Os três constituem uma espécie de síntese da percepção dos desfavorecidos franceses pelo Estado, pelos políticos locais e por uma parte da população. Há os que gostariam de exterminá-los ou, no melhor dos casos, deportá-los, esquecendo-se de que a maioria deles é francesa (Chris), os que gostariam de fazer alguma coisa mas não conseguem (Stéphane) e os que preferem fazer abstração e lavar as mãos (Gwada).

A relação entre a polícia e os moradores das “cités” é sempre belicosa. Proibidos de atirar na população desarmada e de invadir as casas sem um mandado judicial, eles são regularmente expulsos a pedradas desses lugares. Quando eventualmente forçam a entrada, os conflitos tornam-se eventualmente violentos e explosivos. O próprio filme é inspirado em um fato real ocorrido em 2008, que Ladj Ly filmou e transformou no documentário 365 Dias em Clichy-Montefermeuil (que pode ser visto no YouTube), seu primeiro filme, e no curta metragem de mesmo nome do filme atual.

A fim de evitar o embate nesse terreno constantemente minado, os policiais compram a paz social tolerando e negociando com os diferentes grupos que, com suas atividades mais ou menos ilícitas, controlam e dominam esses bolsões de pobreza, mantendo a ordem e eventualmente agindo como delatores (nesse caso, as “cités” adquirem, involuntariamente, o mesmo significado das “cités” gregas, na medida em que possuem um governo, leis, religiões e costumes próprios). Não podendo agir sobre os chefes desses grupos, que os insultam e os desrespeitam, a equipe de Chris se vinga nas crianças, que, ociosas durante as férias de verão, se divertem com pequenas incivilidades.

A narrativa do filme é bastante interessante. Quase todas as sequências são intercaladas por uma cena dos policiais dentro de seu carro, que funciona como uma espécie de aquário, como uma bolha de proteção que os impede de interagir diretamente com a população. Dessa forma a “cité” é transformada numa forma contemporânea dos antigos zoológicos humanos que eles observam de dentro do veículo. Quando descem é para usar a força de seus distintivos e de suas armas ou para negociar alguma coisa. Dentro de seus carros, eles aparecem sempre em planos fechados, câmera tremulante na mão, como se estivessem encurralados, aprisionados, sem horizonte. Os demais adultos, como se estivessem inexoravelmente atados a suas sinas, sem nenhuma possibilidade de mudança, também são quase sempre filmados dessa mesma maneira. Já as crianças, o que explica a surpreendente reviravolta final, simbolizam a mudança, a liberdade e são filmadas em planos mais abertos, com câmera mais estática e uma perspectiva mais generosa.

O filme guarda algumas semelhanças com Cidade de Deus. Com exceção do início, os personagens são filmados o tempo todo no interior da “cité”. Se no filme de Fernando Meirelles esse aspecto assume características preconceituosas, na medida em que a favela é representada como um não-lugar, em Os Miseráveis essa escolha sublinha a marginalização imposta pela sociedade francesa, a falta de diálogo. Uma interação que aparece apenas no início, durante a confraternização da vitória da França na última Copa do Mundo. Uma conquista que parece conciliar a população, mas não o Estado com todos os seus cidadãos. O desfecho dos dois filmes, e uma certa inversão da ordem local local que eles representam, também guarda algumas semelhanças, embora as intenções narrativas sejam totalmente diferentes.

Assim como o belo filme Divinas, de Houda Benyamina, Caméra d'Or no Festival de Cannes de 2016, Os Miseráveis é um retrato endogênico, sem piedade e sem maniqueísmo da dura realidade dos habitantes das “cités” francesas, cujo equivalente mais próximo seriam as nossas favelas. O filme é um verdadeiro uppercut no queixo da sociedade francesa. Não por acaso a Lanchonete de Sallah homenageia Muhammad Ali. Ela se chama Ali Bomaye (Ali, mate-os), a frase que os africanos gritavam para incentivá-lo durante a luta antológica contra George Foreman. Como Ali, Sallah também é um convertido. Ex-delinquente, converteu-se ao islã e ajuda as crianças a desenvolverem, através da religião, uma consciência critica que lhes incute um sentimento de revolta e eventualmente as conduz ao terrorismo. O principal adversário de Sallah, aquele que ele gostaria de nocautear, é a sociedade e tudo o que ela representa.

A atuação de Alexis Manenti (que também é roteirista do filme), o Chris, é excepcional e quase ofusca o talento de Damien Bonnard, o ator francês da moda. Ele encarna com perfeição o papel de um policial racista e extremamente cínico que se orgulha do apelido de "Porco Rosa", em razão de sua total aversão aos muçulmanos, particularmente aos muçulmanos negros. Apesar de ter uma esposa mestiça, seu racismo é tão exacerbado que o conduz a contestar o inquestionável talento de Mbappé, o maior jogador francês depois de Zidane e uma verdadeira unanimidade na França.

O final em aberto demonstra que o conflito social envolvendo os moradores das “cités” e as forças de segurança, braço armado do Estado, está muito longe de seu final. E essa constatação pessimista é reforçada pela citação de Victor Hugo colocada no final (se tivesse sido colocada no início poderia ser considerada como um spoiler e talvez estragasse a surpresa final). Enquanto o Estado continuar agindo como um mau cultivador, haverá sempre ervas daninhas. O final aberto insinua que esse filme está longe do fim.

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