Que me perdoem a boa presença de Marcello Novaes e o narizinho encantador de Tracy Segal, mas são os velhos cinejornais brasileiros as grandes estrelas de Sambando nas Brasas, Morô? As reuniões de Getúlio no Palácio do Catete, os funerais de Carmem Miranda, a chegada de JK ao poder, a construção de Brasília, atrações da Rádio Nacional, antigos carnavais, Copacabana cortada pelos bondes... Os “dourados” anos 50 ressurgem em preto-e-branco, ambientando e contextualizando a história de Pedro (Marcello Novaes), um músico que vem de Minas para tentar a sorte no Rio de Janeiro.
Os cinejornais têm uma razão dramática para estar ali. É que Pedro vem morar com o irmão (Clemente Viscaino), já estabelecido como cinegrafista da Agência Nacional. A narrativa, então, avança entre a encenação ficcional e os materiais de arquivo, e ainda abre espaço para pequenos depoimentos de personalidades ligadas à política e às artes. Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, é convocado para falar dos seus tempos de diretor de cinejornais. Carlos Heitor Cony, Paulo Moura, Aderbal Freire-Filho, o injustamente obscurecido compositor Durval Ferreira, o pesquisador de MPB Jairo Severiano, a ex-vedete Carmem Verônica e outros dão as caras para comentar o mundo em que viveram eles próprios e os personagens da ficção. Em momento precioso dessa interação entre as duas linguagens, uma reconstituição do célebre atentado contra Carlos Lacerda é “narrado” pelo relato de Armando Nogueira, testemunha ocular do acontecimento. Em outro, o nascimento de um bebê é ambientado em cenas reais de um antigo berçário.
Depois das sofríveis cinebiografias Nelson Gonçalves e Zico, Elizeu Ewald obtém o melhor resultado em sua busca perseverante de uma harmonia entre ficção e documentário. Isso se deve, em parte, à decisão de encenar a ficção nos moldes dos anos 50. A abertura do filme já nos transporta de imediato para o cinema pré-Novo. Daí em diante, passagens de cena em “cortinas”, retroprojeções nas janelas de automóveis em movimento e inserções de personagens em fotos de época formam um delicioso arsenal de ingenuidades, um pouco como A Festa de Margarette já fez com o cinema silencioso.
Nem tudo funciona às mil maravilhas (para usar uma expressão do período). Vez por outra, instala-se um certo didatismo, o conjunto se desequilibra e o encanto arrisca se perder. Assim também, não há ingenuidade que faça a conhecida arquitetura do MAM carioca passar por Brasília.
De qualquer forma, é apreciável a maneira como o filme contorna a escassez de recursos (500 mil reais) com determinação e esforço de pesquisa. Uma trilha de canções bem aplicadas ajuda a sustentar o interesse pela cronologia e pelo destino dos personagens. Pedro e sua família mantêm relações distantes com os governos de Getúlio e JK, a era das boates e o advento da Bossa Nova. Têm alguns de seus melhores sonhos triturados pela realidade urbana.
Na cena final, quando finalmente vemos o dono da voz que relatou toda a história do ponto de vista de hoje, há lugar para um certo desconcerto. É quando percebemos que, em plena vigência do culto à celebridade, acabamos de acompanhar uma trajetória de gente comum, uma espécie de fábula em que a fada perdeu o bonde e a vida seguiu em frente.
Texto publicado originalmente no DocBlog do autor)
SAMBANDO NAS BRASAS, MORÔ?
Brasil, 2007
Direção e roteiro: ELIZEU EWALD
Fotografia: RALF TAMBKE
Som: NONÔ COELHO
Direção de arte: FERNANDA CANDEIAS
Montagem: JORGE SANTANA, TIAGO SCORZA
Produção executiva: ARTHUR RODRIGUES
Pesquisa de imagens: MARIA FIGUEIREDO
Elenco: MARCELLO NOVAES, TRACY SEGAL, CLEMENTE VISCAINO, ISABEL GUÉRON, MARA MANZAN, COSME DOS SANTOS
Duração: 80 minutos