Críticas


O PREÇO DA VERDADE

De: Todd Haynes
Com: Mark Ruffalo, Anne Hathaway, Tim Robbins
13.02.2020
Por Luiz Baez
parece convencional

À primeira vista, O preço da verdade parece mais uma obra sobre o heroísmo individual estadunidense - ou sobre um sistema corrompido do qual emerge a própria força regeneradora. Em determinado momento, a câmera adentra a sala de reuniões de um escritório de advocacia, e o homem sentado à cabeceira toma a palavra. Encarnado nessa voz de autoridade, o retorno da fé nas instituições recebe energético clamor. Estão armados os elementos para uma tradicional cinebiografia. Inspirado no artigo jornalístico “O advogado que se tornou o pior pesadelo da DuPont”, o roteiro se centra na figura de Rob Bilott (Mark Ruffalo), protagonista de uma luta como aquela entre Davi e Golias. Cartelas temporais e espaciais localizam a audiência, e a reencenação se inicia.

Como já indicava a primeira frase do texto, Dark Waters (título original) só parece convencional. Não é - ou não seria um filme de Todd Haynes. A começar pelas cartelas: recurso comum - e geralmente preguiçoso - para situar espacial e temporalmente a narrativa, elas se repetem dezoito vezes. Dezoito. Mesmo o mais desatento espectador nota o excesso quando os anos de 2006, 2007, 2008 e 2009 se sobrepõem rapidamente. Para além do artifício ordinário, percebe-se, o exagero modifica a função. Não mais simplesmente o orientam, as consecutivas datas imprimem no público o peso de uma justiça morosa.

A esta altura, o leitor deve se perguntar de que trata o enredo. As mais de duzentas palavras, afinal, ainda nada disseram. Sobretudo porque a forma muito importa em Haynes, um exercício de imaginação tentará restituir a significância de suas sequências: entre as persianas da referida sala de reuniões, o rosto de Bilott aparece pela primeira vez - só se acessam fragmentos da personagem, deixando oculto talvez um mistério. Em seguida, a visita de fazendeiros de Parkersburg, Virgínia Ocidental, o leva a um reencontro com as origens. Rob Bilott e a avó se abraçam, e o plano os captura por trás de uma janela - há uma distância, portanto, entre o advogado residente em Ohio e o menino nascido na Virgínia.

Um dos fazendeiros e conhecido da avó, Wilbur Tennant (Bill Camp) apresentara provas de contaminação química em seu rebanho, motivo pelo qual desejava processar a indústria DuPont. A companhia, no entanto, era uma das clientes do escritório de Rob. Quando ele chega à casa de Wilbur, a enxerga pelo isolamento da suja janela do carro, cujo banco de carona carrega um relatório. As folhas tremem sobre o assento: a câmera desconfia do veredito segundo o qual Tennant seria responsável pela morte dos animais. De mera suspeita, a certeza da contaminação se manifesta no plano subjetivo de uma vaca em surto - o desnorteamento se transmuta em tela, materializando o mistério.

A desorientação animal descobre paralelo humano, e Rob Bilott se vê em um entre-lugar. Na festa da parceria com a DuPont, as imagens intercalam garçons, todos negros, e a vasta maioria de advogados brancos. Grávida, uma das poucas mulheres representaria um problema para a empresa, diz um deles. O protagonista, promovido à posição de sócio, acreditava fazer parte daquele seleto grupo. “Vai se fuder. Caipira!”: não tarda a lembrança de um não pertencimento. Acima do aspecto profissional, então, a montagem reforça o caráter pessoal do caso: sob a aparente continuidade de um corte sutil - análoga àquela entre os âmbitos privado e público -, Rob assiste a evidências sozinho e, depois, em grupo; o mesmo vale para a análise de documentos em casa e, em seguida, no escritório, e para uma explicação repetida à esposa e a um sócio.

Apesar de tudo, o protagonista tampouco encontra lugar entre os “caipiras”: “você ainda é um deles” - isto é, preocupado somente com o dinheiro -, acusa Wilbur. Se “um deles” propunha a crença no sistema, a personagem “entre-lugar" testemunha uma crise. Nesse sentido, o matrimônio deteriorado e a recusa em cantar na igreja metaforizam um tremor basilar na sociedade norte-americana. E Rob, como ressaltado, é apenas uma testemunha.

“O sistema está fraudado”, diz não um magistrado, mas um fazendeiro sem instrução formal. Se há heroísmo em O preço da verdade, trata-se antes de um heroísmo coletivo, da luta de quem enfrenta “um preço” - às vezes mortal - por direitos básicos como o à educação. Longe dos escritórios de Cincinnati, dessa coletividade pode emergir uma força transformadora. E disso sabe bem Todd Haynes.

Após as cartelas finais, o cineasta confessa o uso de não atores: Bucky Bailey, por exemplo, nascido com uma só narina e um olho defeituoso, interpreta a si próprio. Seu tempo de tela é curto, já nos derradeiros minutos. Ele pouco diz: pergunta a Mark Ruffalo o placar de um jogo. Não importa. Ao menos nesse instante, Bucky toma a palavra e não se define por um predicado único: é vítima do PFOA, mas também estrela de cinema.

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