Críticas


GUARDIÃO, O

De: RODRIGO MORENO
Com: JULIO CHÁVEZ, OSMAR NUÑEZ, MARCELLO D’ANDREA
04.05.2007
Por Luiz Fernando Gallego
ME VI TE VENDO

A primeira imagem do filme argentino de Rodrigo Moreno, O Guardião, surge na tela, antes mesmo dos créditos, como se fosse uma faixa iluminada vertical que mostra Rubén, o guarda-costas do título, através da abertura da porta do banheiro onde ele está fazendo a barba. A metade esquerda da tela está escura. Na metade do lado direito, vemos o personagem como que num quadro de formato predominantemente vertical e com outra faixa escura mais à direita. O espectador está podendo ver Rubén como se estivesse espionando, sem ser visto, devendo estar atento a tudo, seja de que ângulo for, seja o que se consiga entrever. E este também será de certa forma, o olhar do “guardião” Rubén.



Após um segundo take, agora em tela inteira, voltamos a vê-lo de forma semelhante à do primeiro enquadramento, ainda que sem as faixas laterais escuras: de um cômodo do pequeno apartamento vemos apenas parcialmente o que se passa em outro, através do vão de uma porta que se abre na parede da sala que se encontra algo fora de foco e menos iluminada do que a cozinha para onde Rubén foi fazer seu desjejum. Ao longo do filme, várias cenas serão vistas como que recortadas, com detalhes da ação (que é quase uma inação) percebidos através de portas e janelas, vendo-se parte do que seria uma imagem mais ampla. Mas cada parte pode mostrar – ou sugerir - bem mais do que se o espectador pudesse ver “tudo”. Até porque nunca se consegue ver “tudo”. Kafka chegou a dizer que o Cinema, devido à mudança das imagens, nos obriga a um constante deixar de ver, a um constante não ver, “já que no cinema não é o olhar que se apropria das imagens, mas são as imagens que se apropriam do olhar”.



Rubén é o “guardião” de um Ministro de Estado, um verdadeiro "cão de guarda" atento a todos os passos do político e de sua família. A intimidade do grupo familiar praticamente não existe, já que é devassada pela onipresença do guarda-costas silencioso, discreto como uma sombra muda que vê, ouve, mas só fala se lhe dirigem a palavra. É como se ele fosse propriedade daquilo que é obrigado a ver e daqueles a quem tem que estar atento, sem domínio algum sobre qualquer coisa do que é visto por seu olhar incessantemente perscrutador - a não ser o de tentar perceber perigos e ameaças antes que tais coisas se concretizem.



Ou seja, profissionalmente, Rubén é colocado no papel de um voyeur, tendo que estar atento a "tudo" o que diz respeito ao Ministro, seja através de imagens refletidas em espelhos retrovisores de automóveis, de portas de vidro, de cortinas mal-fechadas, escutando o que se fala atrás de janelas mal vedadas: a filha adolescente do Ministro masturba o namoradinho no banco de trás do carro oficial; a esposa do político briga com ele por um papel bobo que teria feito num almoço campestre - discutem e ele vai dormir na sala; esta mesma mulher conta, divertida, um mal-entendido por que passou; o Ministro beija uma amante e é visto por Rubén (e pelo espectador) através da janela do prédio onde a mulher mora. Tudo isso é rotina, não deve importar. Só importariam uma suposta ameaça ou um perigo que precisam ser antecipados e evitados.



A zanga da esposa do político, mencionada acima, se referia ao fato do Ministro ter exibido, para um visitante estrangeiro, uma curiosa habilidade de Rubén - que tem talento para retratar rostos em crayon, uma faceta que também alude ao seu poder de observação – não só do que é manifestamente visível na externalidade e nas aparências, mas também do que pode existir um pouco mais além delas - embora Rubén pareça se esforçar para manter um registro neutro e não valorativo do que percebe sobre os outros - e sobre si mesmo. O que deve importar é sua eterna vigilância, seus cuidados no sentido de tentar evitar quaisquer perigos ou danos à figura pública e aos seus familiares.



Enquanto Rubén "tudo" vê, o espectador é colocado no papel de ver "tudo" o que se refere a Rubén e ao que ele vê, reproduzindo o jogo de voyeurismos da platéia quando via o personagem fotógrafo de James Stewart espionando os vizinhos no clássico de Hitchcock, Janela Indiscreta. Ou ainda como na cena final de Salò, de Pasolini, quando um dos perversos pervertidos olhava de dentro da mansão, através de uma janela, as barbaridades cometidas no jardim, ao ar livre; e era como se Pasolini também colocasse o espectador neste papel escopofílico e até mesmo epistemofílico de tentar ver "mais" sobre um personagem que vê "mais ainda" alguma outra coisa, talvez até mesmo uma cena fora de cena.



Afinal, este é o lugar mesmo do cinéfilo que acha que se apropria da imagem, que tenta ver “mais”. No entanto, é a imagem selecionada que se apropria dele e mostra-esconde o que vai ser visto, entrevisto ou ocultado. Se não há nada a "mais" para ser visto, é o significado do que se vê que pode ficar escamoteado ou negado pelo olhar que apenas "registre" como se fosse uma câmera mecânica (câmera que não é um olho com uma mente capaz de dar significado para o que é percebido).



O que é mais interessante neste filme está na forma de lidar com a platéia e com o que o filme exibe para quem assiste suas imagens em enquadramentos de freqüentes planos fixos com as pessoas sendo vistas muitas vezes em meio a recortes geométricos, ou ainda nas tomadas arquitetônicas vistas de cima e que mostram a rotina repetitiva dos carros oficiais chegando e partindo. A vida pessoal de Rubén será um pouco mais detalhada na segunda metade do filme e também é rotineira, prosaica, repetitiva, sem atrativos, empobrecida. Uma irmã de conduta inadequada praticamente estraga o que já era uma constrangedora reunião de aniversário em um restaurante mais popularesco com o indefensável karaokê. A visita a uma prostituta é pateticamente desvitalizada e sem erotismo.



O roteiro se prende, naquilo que tem de melhor, nesta demonstração, quase antonioniana, do vazio de significado na vida do guarda-costas que, apesar de bem menos glamourizada, não é tão diferente do vácuo nas vidas dos mais abonados que ele acompanha como um anjo (?) da guarda. E tudo o que ele vê é um quase nada se não tiver algum significado. O desfecho acaba por ser algo previsível depois de tanta ação “sem ação” e tantos registros como que apenas "mecânicos", mas não chega a comprometer o interesse que o filme pode despertar - nos espectadores menos impacientes, é claro; os que ficaram atentos para acompanhar a sucessão de imagens que retratam vidas observadas sem tanto barulho nem fúria, significando nada.



Cuidadoso em sua mise-en-scène, com fotografia e montagem pertinentes ao clima pretendido, O Guardião também se beneficia - e muito - da composição exemplar do ator Julio Chávez, bem coadjuvado por todo o elenco, com algum destaque para a irmã bizarra, interpretada pro Cristina Villamor.





# O GUARDIÃO (EL CUSTODIO)

Argentina, Uruguai, França, Alemanha, 2006

Direção e Roteiro: RODRIGO MORENO

Fotografia:BARBARA ALVAREZ

Montagem:NICOLAS GOLDBARD

Música: JUAN FEDERICO JUSID

Elenco:JULIO CHÁVEZ, OSMAR NUÑEZ, MARCELLO D’ANDREA. ELVIRA ONETTO, CRISTINA VILLAMOR.

Duração:93 minutos

Site oficial: clique aqui

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