Críticas


UMA VIDA OCULTA

De: TERRENCE MALICK
Com: AUGUST DIEHL, VALERIE PACHNER, BRUNO GANZ, MICHAEL NYQVIST
29.02.2020
Por Marcelo Janot
O melhor filme de Malick desde a obra-prima “A Árvore da Vida”, e um dos mais acessíveis.

Um dos maiores cineastas vivos, o americano Terrence Malick também ficou conhecido por ser um sujeito recluso, que não se deixa fotografar e evita entrevistas. De vez em quando surgem pistas: o colega de geração Martin Scorsese contou que, após assistir seu “Silêncio” (2016), Malick escreveu pra ele questionando: “o que Cristo quer de nós?”. Essa inquietação espiritual parece ter acompanhado Malick durante o longo período de três anos em que passou editando “Uma vida oculta”, rodado em 2016.

A espera compensou. É seu melhor filme desde a obra-prima “A Árvore da Vida” (2011). E um dos mais acessíveis. Conta a história do camponês austríaco Franz Jäggerstätter, que ao ser recrutado pelo nazismo se recusou a jurar lealdade a Hitler por não concordar com a guerra. O ator alemão August Diehl, que interpretou um memorável major nazista em “Bastardos Inglórios”, capitaneia um impecável elenco europeu que inclui, em seus últimos papéis, nomes como os dos falecidos Bruno Ganz e Michael Nyqvist. Os personagens falam inglês, mas há discursos de ódio vociferados em alemão como cães raivosos latindo, e que não são legendados, como se o sentimento que emana deles importasse mais do que o que eles estão falando.

Malick optou por uma narrativa linear, menos fragmentada que a de seus quatro filmes anteriores. Se entre 1973 e 2011 ele havia dirigido apenas cinco filmes (com um intervalo de 20 anos entre “Dias de Paraíso” e “Além da Linha Vermelha”), na última década acelerou o ritmo. “Amor pleno” (2012), “Cavaleiro de copas” (2015) e “De canção em canção” (2017) eram ousadias estéticas que desafiavam análises. O experimentalismo afastou o público, mesmo com astros hollywoodianos no elenco, e deixou nos fãs a impressão de que Malick já não tinha mais tanto a dizer.

O reequilíbrio veio na forma de um drama de guerra que é também uma experiência sensorial, e isso se deve muito ao trabalho de montagem, que segue o fluxo de pensamento dos protagonistas, cujas vozes em off pontuam a narrativa. A música de James Newton Howard e a câmera em constante e suave movimento de Jörg Widmer também têm fundamental importância na construção da atmosfera pretendida.

Na obra de Malick é comum ver os personagens tentando encontrar o seu Éden em meio a exuberantes imagens de natureza. Esse equilíbrio é rompido quase sempre pela ação predatória do próprio homem, e a fé pode surgir como solução ou subterfúgio. Franz, assim como Malick, era um católico fervoroso. A vida pacata e idílica que levava ao lado da mulher e das filhas na aldeia austríaca de Radegund mudou com o início da Segunda Guerra. Quase todos os moradores endossaram o discurso de ódio dos nazistas. “Os estrangeiros invadem as nossas ruas. Os imigrantes não se importam com o passado, apenas com o que podem agarrar”, diz o prefeito. Malick reforça a incômoda sensação de contemporaneidade que o filme transmite. A ignorância xenófoba e a falta de empatia, que hoje contaminam a Europa e boa parte do mundo, estão lá.

Franz é aconselhado diversas vezes a pensar nas consequências da recusa para ele e sua família. Mas não é movido pelo desejo de se tornar um mártir que quer mudar o mundo. Pesam mais suas convicções em relação a o que é certo e errado, a tomada de consciência espiritual. O roteiro não enfatiza o heroísmo do protagonista, como num “A Lista de Schindler”, e nem há reviravoltas na trama como pregam os manuais de roteiro. Tratam-se da vida e o pensamento de um homem comum que deixou um exemplo para a humanidade, filtrados pelo olhar peculiar de um cineasta genial.

A frase na cartela final é extraída do romance “Middlemarch”, de George Eliot, e faz referência elogiosa aos que “viveram com fé uma vida oculta e repousam em túmulos que ninguém visita”. Franz Jäggerstätter saiu do anonimato nos anos 60, com a publicação de sua biografia. Ele foi beatificado em 2007 e a casa onde viveu (que serviu de locação para o filme) é hoje local de peregrinação. Quanto a Malick, pode ainda ter dúvidas do que Cristo quer de nós, mas sabe muito bem o que quer com seu cinema.

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Outros comentários
    5014
  • Claudio
    01.03.2020 às 00:19

    Requinte de cinema. História poderosa em impactantes cenários naturais e edificados, fotografia, montagem, interpretações. E quem se lembrar de ‘A noviça rebelde’ precisa correr para um atendimento psicológico...