Críticas


O OFICIAL E O ESPIÃO

De: ROMAN POLANSKI
Com: JEAN DUJARDIN, LOUIS GARREL, EMMANUELLE SEIGNER, GRÉGORY GADEBOIS
11.03.2020
Por Luiz Fernando Gallego
Contra a “política de cancelamento” de pessoas com condutas inadequadas, este filme deve ser visto pelo que é.

Apesar do título original francês, J’Accuse, o famoso artigo-manifesto escrito por Émile Zola em 1898 em defesa de Alfred Dreyfus, condenado injustamente por crime de traição à pátria, o roteiro é baseado em livro que retrata o famoso “caso Dreyfus” focando mais fortemente na figura de Georges Picquart - sem dúvida importantíssimo nas tentativas de revisão da asquerosa condenação - com liberdades ficcionais em relação a fatos e alguns dos personagens reais menos importantes para o processo.

A mulher de Dreyfus, que tanto lutava pelo marido, não é mencionada. Seu irmão - que fez enormes esforços em favor da justiça - é visto em uma única cena. O destino de Zola, condenado por "ofensas ao Exército francês", não é informado ao espectador. E as amplas repercussões políticas que o caso provocou, direta e indiretamente, não fazem parte dos interesses do roteiro. O filme, no entanto, precisa ser visto: como obra de ficção, em parte, e pelos inúmeros detalhes do caso, absolutamente verdadeiros.

O que importa, portanto, é a recriação de um vergonhoso episódio de antissemitismo e corporativismo militar em que altas patentes evitavam reconhecer um grande e grave erro jurídico que havia condenado um inocente, e, consequentemente, mesmo que não tivessem obrigatoriamente tal meta, acabavam por acobertar o verdadeiro criminoso.

Desenvolvido em formato de narrativa clássica, com uso econômico de música não-diegética, fotografado exemplarmente por Pawel Edelman (que trabalha com o diretor Polanski desde O Pianista) e interpretado por um elenco afinado, O Oficial e o Espião não deixará, entretanto, de levantar associações do caso que retrata com as acusações que o cineasta vem recebendo, só que sobre abusos sexuais envolvendo menores de idade. O próprio Polanski chegou a comentar que sabia o que Dreyfus havia passado, pois também estaria sofrendo acusações infundadas (sic).

O que bate na tela, entretanto não é, manifestamente, a defesa de um diretor famoso que tem pelo menos um episódio comprovado de má conduta em que é réu confesso: o enredo do filme tem base em uma outra realidade factual ocorrida entre 1894 e 1906 (com um epílogo em 1907). E que ecoa nos dias atuais: afinal, houve fake news elaboradas por pessoas em cargos de poder visando difamação e culpabilização de terceiros. No caso, um militar judeu, figura metonímica de todo seu grupamento social - que sofre preconceitos históricos. O próprio Picquart (personagem) aparece em uma cena assumindo que "não gosta" de judeus (ficção ou fato?), embora não vá aceitar a condenação injusta de um deles, o que, dramaticamente, favorece bastante o tipo central do filme.

Se há dramaturgia ficcional (e há), ela acentua ainda mais o interesse do espectador que, mesmo sabendo do desfecho, terá sua atenção mantida durante os 130 minutos da projeção com as reviravoltas dos julgamentos, calúnias e falsificações.

E se não era fato que o prédio dos serviços de inteligência militares da época ficava em um bairro que fedia a esgoto, a metáfora é, dramaticamente, bastante eficaz.

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Outros comentários
    5019
  • Maria Inês Escosteguy Carneiro
    12.03.2020 às 14:39

    Nao vi o filme, mas achei a crítica muito bem escrita e esclarecedora. O destaque dado ao fato das falsas acusações é importante. Sempre bom lembrar as injustiças históricas, na tentativa de que se forem lembradas, podem servir de alerta, uma recordação que pode levar à repetição com a possibilidade de elaboração.
    • 5020
    • Luiz Fernando Gallego
      12.03.2020 às 17:22

      Obrigado. É mesmo um episódio emblemático na história das injustiças criadas por perversidade.