Críticas


BAIXIO DAS BESTAS

De: CLAUDIO ASSIS
Com: MATHEUS NACHTERGAELE, CAIO BLAT, DIRA PAES
15.05.2007
Por Luiz Fernando Gallego
PEEP SHOW DE POBRE

Em uma cena de Baixio das Bestas vemos uma sala de cinema abandonada, em ruínas. O personagem Everardo – ou o ator Matheus Nachtergaele - fala com os olhos voltados para a câmera (ou seja, para o espectador): “O que é bom no cinema é que você pode fazer o que quiser” (cito de memória, mas era algo neste sentido). Desde que Bergman fez Harriet Andersson olhar para a câmera longamente no final de Mônica e o Desejo, alguns diretores se permitiram esta tomada de seus atores - ou de seus personagens – “quebrando” a ilusão de naturalismo da narrativa e questionando - ou apenas “encarando” - a platéia, interferindo na habitual suspensão de descrença do espectador em relação ao que se passa na tela. Quando esse recurso é utilizado, somos lembrados que aquilo é “apenas” um filme, uma realidade virtual com grande poder de convencimento e envolvimento. Neste filme de Cláudio Assis, onde o que domina é uma forte intenção "realista", o recurso surge apenas tolo, sem outro sentido do que enunciar uma banalidade como se fosse uma reflexão ambígua e muito esperta sobre o cinema (local da projeção de filmes) e o cinema (os filmes e sua linguagem). É um momento forçado no corpo do filme, gratuito. Por outro lado, o que não parece gratuito em um filme tão pretensioso e com um “corpo” tão desarticulado como este Baixio das Bestas?



O espectador acompanha alguns personagens – a maioria bem canalha – em situações e atitudes sórdidas, com a justificativa de estar retratando uma realidade miserável e mesquinha, seja no plano existencial, seja no terreno ético, seja ainda - e principalmente - nos (des)encontros das desigualdades sociais e sexuais. Os blocos narrativos aparecem intencionalmente “soltos”, reproduzindo clichês de uma pretensa linguagem cinematográfica contemporânea. Os fios das histórias que se cruzam vão sendo desenvolvidos episodicamente sem visar “conclusões” evidentes. São mostradas cenas bizarras como a do estupro de uma prostituta com pedaço de madeira (visto apenas em sombras, ainda bem) e outro estupro, o de uma mocinha que o avô exibia nua para a peãozada se masturbar (como se fosse um peep show de pobre); outra prostituta é pisoteada e chutada no rosto durante uma suruba em um bordel de última categoria; há uma sugestão (sem tanta ousadia) de uma parceria homoerótica entre os personagens de Matheus e de Caio Blat, com tomadas de cima de seus corpos e seus pênis bem exibidos; há cenas de maracatu, diálogos entre prostitutas, um sujeito cavando uma fossa ao lado da casa do velho que explora a mocinha... enfim, uma mistura desorganizada de forma certamente intencional, talvez visando sugestões mais interessantes do que de fato conseguem provocar e que não resultam em nada mais conseqüente, até porque o ritmo do filme é claudicante e as intenções e significados do que é explorado nas cenas permanecem vagos no disfarce da sintaxe modernosa que tem feito o delírio de cinéfilos formalistas que se opõem aos “conteudistas”. Esquece-se que o que era aparente naturalidade e fluência (no neo-realismo de Rossellini, por exemplo) está sendo mal imitado em uma já nem tão recente onda de neo-naturalismo rasteiro e sem transformação em qualquer coisa que se aproxime de uma linguagem artística ou dramática instigantes e de fato criativas: o que antes surpreendia como originalidade e mesmo verdadeira genialidade está reduzido à busca de épater através do escândalo pelo escândalo.



Cabe uma digressão: quando enquadramentos preciosistas em “profundidade de foco” nos clássicos de William Wyler ou de Orson Welles mereciam análises detalhadas de André Bazin, não era bem a técnica do grande fotógrafo Gregg Toland que estava sendo louvada, mas o uso dramático da modalidade como parte da sintaxe do filme e como recurso de linguagem escolhido pelos cineastas, adequando a forma ao que estava sendo tratado e que precisava ser resolvido como narrativa em imagens. Em Baixio das Bestas, o que pode existir de mais expressivo nasce da fotografia de Walter Carvalho, mas modos de filmar que, no passado, podem ter sido novidades utilizadas como modos de expressão cinematográficos, hoje podem estar sendo repetidos por vários diretores como recursos formais banalizados, sem função específica nem sentido dramático mais pertinente. Não é com bons cortes e uma câmera (às vezes) fluente que se atinge um resultado suficientemente satisfatório em um filme como este, bem decepcionante para o que se poderia esperar do diretor de Amarelo Manga, onde – de alguma forma – outras imagens chocantes e personagens anéticos se articulavam em um roteiro e narrativa que pareciam dizer mais a que vieram.



Desta vez, retratar por retratar em uma dimensão “um por um” (ou seja, sem dimensionar nada do que exibe) soa como questionável álibi para chocar e enganar incautos quanto à “coragem” do filme. A propósito, uma discussão flagrada na saída da sessão: três senhorinhas falavam sobre o filme através de clichês elogiosos quando outro espectador perguntou-lhes o que haviam conseguido apreciar. Uma delas quebrou um certo silêncio perplexo que se estabeleceu entre elas, dizendo que o filme era “muito cru”, com um tom condescendente pelo qual sugeria que o outro não suportara a “crueza” do filme. Ao que ele respondeu: “Filme pornô também é cru e não é bom cinema. Basta ser “cru” para ser bom, minha senhora?” E saiu vociferando contra a “filosofia profunda” da frase dita para a câmera mencionada na abertura deste texto. Outros momentos que se pretendem inteligentes do filme mostram repetidamente insetos em vasos de formol (citação empobrecida de fixações em filmes de Buñuel?) e bóias-frias que trabalham nas plantações de cana - e que são vistos insistentemente (tal como as prostitutas) sem participarem diretamente da ação. Espera-se que não sejam “metáforas” simplórias sobre profissionais prostituídos e de pessoas reduzidas ao estado animal. O pior é que talvez sejam mesmo.



# BAIXIO DAS BESTAS

Brasil, 2007

Direção:CLAUDIO ASSIS

Roteiro:HILTON LACERDA

Fotografia:WALTER CARVALHO

Montagem:KAREN HARLEY

Música:PUPILLO

Elenco:MATHEUS NACHTERGAELE, CAIO BLAT, DIRA PAES, MARIAH TEIXEIRA, FERNADO TEIXEIRA, MARCÉLIA CARTAXO.

Duração:80 minutos



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