"Acabou-se o respeito", constata Heitor, personagem de Baixio das Bestas que, porém, está entre os mais envolvidos com uma absoluta deformação de valores, bastando dizer que explora sua neta, a adolescente Auxiliadora, ao tirar regularmente sua roupa diante de caminhoneiros em passagem pela região, na Zona da Mata de Pernambuco. A "podridão do mundo" desponta como o "tema" deste novo filme de Cláudio Assis, que não traz propriamente uma história e se expressa, sobretudo, através da câmera de Walter Carvalho.
Não é por acaso que Heitor aparece de costas ao fazer seu comentário e que sua imagem frontal só seja registrada na mesma cena quando ele muda de assunto. As opções do diretor e do diretor de fotografia ficam bem marcadas ao longo da projeção e não se revelam, claro, aleatórias. Na primeira passagem em que o avô despe a neta diante dos caminhoneiros, a câmera começa fechada nos dois personagens e depois vai abrindo de modo a mostrar o grupo de homens que a espiona; na segunda, o movimento é inverso, com a câmera movendo-se dos caminhoneiros em direção à Auxiliadora e a Heitor, que, demonstrando controle (ainda que este pareça prestes a escapar de suas mãos), determina o fim da apresentação e o corte da cena ao decidir, subitamente, que "acabou, Auxiliadora, vamos para casa".
Este poder de decisão talvez possa ser conectado à outra fala – "Sabe o que é melhor no cinema? É que no cinema você pode fazer o que quiser" –, dita pelo agroboy Everardo, de frente para a câmera e, conseqüentemente, para a platéia. Cláudio Assis faz o que quer, mas com fundamento. Filma do plano aberto para o fechado, e vice-versa, de fora para dentro e, principalmente, de cima para baixo, talvez com o intuito de confrontar o público com uma visão panorâmica de um universo específico, recortado, formado, basicamente, por exploradores e impotentes. Além de descortinar um painel humano desolador, o diretor investe num registro seqüenciado de espaços arruinados, mas dotados de personalidade: os escombros de um cinema, onde jovens se masturbam, estupram prostitutas, vociferam contra o mundo e assistem a Oh! Rebuceteio , filme pornô de Cláudio Cunha, de meados da década de 80; um prostíbulo decadente, habitado por mulheres revoltadas com a sua condição e/ou agressivamente integradas a ela; e uma casa repleta de quadros sugerindo lembranças afetivas.
Há ainda diversas opções evidenciadas na câmera de Walter Carvalho: a alternância entre imagens focadas e desfocadas dentro da mesma cena, a exemplo da passagem em que Auxiliadora, aparentemente absorta no mundo da televisão, é retirada dele quando Heitor entra no seu foco e a força a "voltar" à sua realidade; o repetido close no rosto dela dentro da kombi; a luz em alguns atores/personagens (nem sempre nos que estão mais próximos da câmera); as vozes em off; e os constantes resmungos e murmúrios. Cláudio Assis também buscou uma estrutura rigorosa, circular, conduzida pela rotina dos trajetos e pelo ciclo da cana de açúcar.
Mas a força principal do filme reside no trabalho do elenco. Caio Blat apresenta um misto de ódio e infantilidade (na projeção no Everardo de Matheus Nachtergaele), Mariah Teixeira transmite expressividade no silêncio concentrado de Auxiliadora, Marcelia Cartaxo e Hermila Guedes marcam com força a primeira cena no bordel, Dira Paes procura tirar partido de uma personagem assumidamente despudorada e Conceição Camarotti potencializa a imagem da cafetina decadente. No entanto, Irandhir Santos e Fernando Teixeira estão especialmente bem na apresentação de interpretações orgânicas devido à habilidade com que ocultam seus trabalhos de construção de personagem.
Filme polêmico, como seria de se esperar do realizador de Amarelo Manga , Baixio das Bestas dividiu opiniões na última edição do Festival de Brasília, de onde saiu vencedor com os Candangos de melhor filme, atriz (Mariah Teixeira), atriz coadjuvante (Dira Paes), ator coadjuvante (Irandhir Santos), trilha sonora e prêmio da crítica.
# BAIXIO DAS BESTAS
Brasil, 2007
Direção:CLAUDIO ASSIS
Roteiro:HILTON LACERDA
Fotografia:WALTER CARVALHO
Montagem:KAREN HARLEY
Música:PUPILLO
Elenco:MATHEUS NACHTERGAELE, CAIO BLAT, DIRA PAES, MARIAH TEIXEIRA, FERNADO TEIXEIRA, MARCÉLIA CARTAXO.
Duração:80 minutos