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ALUCINAÇÃO PERMANENTE DA VIDA

06.06.2007
Por Dinara Guimarães
ALUCINAÇÃO PERMANENTE DA VIDA

A coincidência entre o corpo histérico e o corpo teatral é apresentada por dois espaços em Noite de Estréia (Opening Night), EUA, 1978, do nova-iorquino John Cassavetes, o pai de uma teatralidade inseparável de um cotidiano. Paralelamente ao trabalho cênico no palco teatral, encena o que se passa no Outro Palco, o cotidiano no apartamento de uma atriz de teatro.



É a peça dentro da peça, em uma adaptação da peça de teatro de Ted Allan, teatrólogo amigo do diretor. Compõe a trilogia de filmes com o corpo histérico, iniciada por Uma mulher sob influência (A Woman Under Influence) em 1975, terminada por Amantes (Love Streams), em 1984. Expressa bem o estilo que Cassavetes cultivou em seu trabalho e que era um método padrão de comandar sua equipe, que envolvia sistematicamente, ensaios quase nos moldes teatrais. Isso é bastante compreensível pelo fato dele ter tido uma formação de teatrólogo nas cadeiras do Actor’s Studio e de ter participado de uma geração de atores marcada pela herança de Stanislavski, em cujo teatro o físico e o psicológico estão interligados, e de Frank Capra e Carl Dreyer, donde viria a inspiração para os filmes que veio a dirigir.



A atriz de teatro Mirtley Gordon, personagem principal do filme, estrelada por Gena Rowlands, casada com John Cassavetes, no momento em que galgou a celebridade e a fama, enfrenta um bloqueio em integrar-se na sua personagem que reflete sua própria vida. Destaco a cena violenta da bofetada em que Mirtley Gordon atira-se no chão mesmo antes de ser tocada pela mão de Maurice Adams, o próprio Cassavetes, quando ensaiam a apresentação. A queda simulada não é pura falsidade, mas representa uma semelhança entre o corpo que cai e o corpo que sai da cena. Assim é o corpo da histérica, como um objeto destacado do corpo do Outro: cai da cena para jogar-se no vazio.



Relembro que Sigmund Freud inaugura a psicanálise, ainda em germe, com a descoberta de que no teatro da histeria não há espetáculo, não é tanto a ver, como fez o mestre Jean Martin Charcot, em suas aulas de apresentação das doentes no hospital Salpêtrière, servindo-se das histéricas para coreografar os seus gestos pelo metrônomo, a mais recente invenção em aparelhagem fotográfica. Até que Freud, na aurora do século vinte, considera o valor de metáfora dos sintomas somáticos e, desde então, passa a escutá-las. Acaba descobrindo que o corpo é o lugar do sintoma na histeria de conversão e dirige-se, pela transferência, a um pai.



Assim também Cassavetes posicionou a câmera no lugar da escuta daquilo que as histéricas nos interrogam, quanto ao enigma do corpo feminino onde se esconde tanto a insatisfação do desejo feminino como o brilho da mulher. O primeiro plano de Gena Rowlands, em seu camarim, continua com o piano, em seguida os bastidores, depois o público para, por fim, no arrancar da parede, captar a luz do dia e a atmosfera de instante. Tudo isso em um só plano. No jogo da cena, enquanto a atriz persegue sua personagem sendo seguida por uma fã enlouquecida, Nancy Stein (Laura Johnson), logo em seguida ao assédio na noite de estréia de sua nova peça, na saída do teatro e através do vidro do automóvel, vê a jovem atropelada, na cena chuvosa sombria e iluminada.



Depois de morta, Nancy Stein reaparece no Real, na forma de uma imagem alucinatória, para afrontar a atriz, cuja relação dual anima-se da alternativa “um ou outro”, ou “tu ou eu”, que exclui a simetria ou reciprocidade. É assim transformada na aparição súbita do duplo que provoca uma angústia ligada ao olhar que julga e pune e pode tomar uma intensidade paranóica como no momento em que, por fim, a jovem é assassinada pela atriz já madura. Não é tanto o duplo do espelho. Ocorre quando o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal maneira que fica em dúvida sobre quem é o seu eu, ou substitui o seu próprio eu por um estranho. A jovem fã coloca em cena o desejo da histérica que é o de ascender ao desejo por meio de uma identificação imaginária com uma outra mulher em quem adora seu próprio mistério, na busca constante do que é ser uma mulher.



Ao final, a representação dos atores Mirtley Gordon e Maurice Adams, no palco do teatro, faz passar por verídica a trama ficcional da peça, brincando de confundir sua vida com a peça. Nesse sentido, a vida é uma grande peça, como existe na fantasia seja da histeria feminina, ou da histeria masculina. É como se suportasse ser uma alma errante em um corpo, ou talvez em uma representação dele mesmo, pontuada na peça pelas frases de Mirtley Gordon: “Não somos mais nós mesmos...”, “Os outros estão em nosso lugar...”.



Quanto à imagem idealizada da atriz, induzindo um investimento nessa imagem captada dela, a atriz sabe que pertence ao seu público, quer dizer, que não é dona de sua própria imagem e não pode dispor dela. Assim a cada encontro com a platéia remete-se à divisão que não pode nunca se concluir de maneira estável, por reproduzir a imagem da devoração, da absorção, da deglutinação de uma pela outra, que surge do intricado processo da pulsão escópica com a pulsão destrutiva, ilustrada na cena em que o público se atira ao corpo da atriz, como o tigre persegue a presa. Nisso consiste a relação entre o teatro íntimo e o espetáculo visível ao olho clínico do cineasta, pois é ele quem posiciona a câmera expondo a estrutura do discurso da personagem engendrado por uma típica idéia histérica, de que o mundo é uma alucinação permanente da vida, sobretudo o mundo da figuração cinematográfica, induzida, em última instância, por um mistério fantasioso e o brilho da histeria.

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