(Texto publicado originalmente no DocBlog do autor)
A serra de Caparaó, nas proximidades da divisa entre Minas e o Espírito Santo, tem cidades com nomes idílicos como Paraíso e Espera Feliz. Nada mais adequado como cenário de uma utopia. Foi por ali que, entre agosto de 1966 e março de 1967, um pequeno grupo de ativistas, alguns deles militares expurgados da Marinha e do Exército, apoiados remotamente por Leonel Brizola e Fidel Castro, tentaram criar um foco de guerrilha rural. Foi a primeira tentativa de resistência armada contra o regime militar instalado em 1964.
A guerrilha fracassou antes mesmo de qualquer ação mais concreta. As possibilidades, claro, eram mínimas, mas o reexame do caso no filme Caparaó levanta razões bem prosaicas para o fracasso. Armas e explosivos eram transportados em ônibus e trens de linha, além de uma kombi da Kellog’s carregada de sucrilhos. A presença de cabeludos e barbudos comprando mantimentos em grandes quantidades também despertou suspeitas imediatas. Nos primeiros meses de 1967, a força do pequeno exército já estava comprometida pela fome, o enfraquecimento, as desistências e o abandono do financiador cubano. Aparentemente, o tiro mais famoso foi desfechado pela mulher do ex-sargento Araken Vaz Galvão por motivos conjugais.
É uma história ao mesmo tempo heróica e patética, que Flavio Frederico reconta através de depoimentos não só de guerrilheiros sobreviventes, mas também de policiais militares que participaram de sua captura e populares que colaboraram na sua localização. O modelo lembra bastante o que Maurice Capovilla utilizou em O Último Dia de Lampião, célebre edição do Globo Repórter de 1978. A semelhança é maior ainda quando a conjugação de depoimentos sobre a captura passa a ser ilustrada por fragmentos de ação encenada. Não acho que a opção acrescente grande coisa a Caparaó, nem dramaticamente nem formalmente. As filmagens sobre lombo de cavalo sugerem mais uma estetização de videoarte do que um reposicionamento do olhar do espectador.
Apesar do tom um pouco frio e monocórdico, o doc cria bons momentos na simples exposição desses homens ainda hoje grávidos de idealismo. Flavio Frederico chega a voltar à serra na companhia do comandante da guerrilha, Amadeu Felipe, que esperava reencontrar uma partida de armas escondida na selva desde 1967. O resultado dessa busca parece reeditar, 40 anos depois, a mesma propensão ao insucesso. Em outra boa cena, dois ex-combatentes confrontam suas impressões sobre o desfecho do movimento, demonstrando que até hoje nem tudo ficou esclarecido – nem para eles mesmos – sobre Caparaó.
Não há aqui a mesma disposição para repensar opções históricas e recontextualizá-las à luz do presente, como em Hércules 56, filme-primo de Caparaó. Silvio Da-Rin aparece nos créditos como colaborador do roteiro, mas Flavio Frederico parece mais interessado em se ater ao episódio, suas origens e desdobramentos mais próximos. Em comum com outros docs sobre a luta armada (inclusive No Olho do Furacão, de Toni Venturi), está o primado da memória pessoal sobre a visão do historiador. Ter esses personagens ainda vivos para contar a História como experiência vivida no próprio corpo é um privilégio inestimável.
Nesse sentido, Caparaó cumpre o que se espera do cinema nesse tipo de balanço histórico. Contribui modesta mas dignamente para iluminar nosso passado recente. No É Tudo Verdade de 2006, foi o vencedor da competição nacional.
CAPARAÓ
Brasil, 2006
Direção, roteiro e produção executiva: FLAVIO FREDERICO
Fotografia: CARLOS ANDRÉ ZALASIK
Montagem: VITOR ALVES LOPES
Som direto: GABRIELA CUNHA
Pesquisa: PAULO CANABRAVA, IARA CREPALDI, FLAVIO FREDERICO, ALEJANDRA HOPE
Duração: 77 minutos