Críticas


LEIS DE FAMÍLIA, AS

De: DANIEL BURMAN
Com: DANIEL HENDLER, ARTURO GOETZ, JULIETA DIAZ
05.08.2007
Por Luiz Fernando Gallego
TELÊMACO EM VEZ DE ÉDIPO

As Leis de Família é, essencialmente, um filme sobre um jovem pai e os relacionamentos complementares que ele vai desenvolver a partir da experiência da própria paternidade com seu filhote ainda em fase de Jardim de Infância e sua atarefada esposa - e como isto repercute na relação com seu amável, mas nem por isto menos assertivo pai, um homem bem determinado, cheio de vitalidade em seu cotidiano meticuloso.



Ou seja, de um determinado ângulo, o ainda bem moço professor de Direito (e Defensor Público) Perelman Jr. (Daniel Hendler) se apresenta algo aprisionado ao papel de filho do Perelman Sênior (Arturo Goetz), também advogado, experiente e prático, cheio de pequenas manhas no exercício profissional. Por outro lado, o recente papel de pai vai confrontar sua existência com as atitudes pessoais e posturas profissionais que vinha mantendo de forma algo restrita pela ambigüidade de estar identificado com o pai (na mesma profissão, por exemplo), mas em oposição ao modo de ser e funcionar do genitor.



Os relacionamentos entre filhos e pais do mesmo sexo ficaram bastante marcados no imaginário cultural ocidental a partir da configuração cunhada por Freud como “Complexo de Édipo”, pilar da teoria psicanalítica, tanto para a terapêutica como para hipóteses de compreensão do estabelecimento de dois tabus considerados essenciais no processo civilizatório: a interdição do incesto e a severa proibição do regicídio (regicídio lato sensu, já que os governantes – sejam reis, presidentes ou primeiros-ministros – ocupam o lugar de figura paterna na esfera pública).



Na década de 1970, outro psicanalista vienense, Heinz Kohut, contrapôs a alternativa do que seria uma inevitável rivalidade complexa entre filho e pai ao relembrar um aspecto pouco popularizado em outro mito, o de Ulisses. Este herói tentou resistir à convocação para lutar na Guerra de Tróia fingindo-se de louco, mas foi desmascarado na simulação que vinha mantendo ao se comportar com lucidez e sensatez para evitar a morte de seu filho, Telêmaco, cuja vida havia sido colocada em risco exatamente para testá-lo. Ora, Ulisses não queria ir guerrear para permanecer ao lado de sua mulher, Penélope, e de seu filho ainda pequeno: deixar o bebê morrer para manter a aparência de loucura seria contraditório; perderia o objetivo da farsa que estava representando.



Vinte anos depois, quando Ulisses retornou à pátria, teria seu filho lutando a seu lado contra pretendentes à rainha, que permanecera fiel ao marido, rejeitando os que almejavam o trono a partir de um novo matrimônio para ela. Diferentemente de Laio, Ulisses jamais desejou a morte do filho; e este filho, Telêmaco, em vez de reproduzir o destino de Édipo, que matou o pai e casou-se com sua mãe, quis preservar a união do casal formado por seus pais.



O mais recente filme do diretor argentino Daniel Burman ressalta aspectos da ambivalência da identificação de um filho com seu pai, com um misto de crítica filial (muda) e uma certa admiração (idem) de um renitente, mas lealmente bem-intencionado Telêmaco. Chama atenção a ausência, durante quase todo o filme, de menção do nome próprio de Perelman Jr (que se revelará ´Ariel´, como em outros filmes do cineasta): até mesmo sua esposa o chama pelo sobrenome paterno. Pode-se ainda perceber, nas atitudes do filho e nas entrelinhas de sua insistente narrativa em off, a já mencionada desaprovação muda, mas evidente, aos métodos mais, digamos, “populares” do pai conduzir sua prática profissional.



Por seu lado, o mais novo, como empolgado professor, é capaz de recursos histriônicos em suas aulas, algo equivalentes aos perfurminhos e bibelôs que o pai oferece a secretárias, um dos recursos de simpatia utilizados pelo mais velho para manter uma teia de acesso fácil a bons relacionamentos. Para não falar das “testemunhas profissionais” recrutadas, truque de franca oposição às provocações éticas que o mais jovem faz a seus alunos em aulas-show.



A narrativa cinematográfica de Burman se mantém dentro do modelo mais tradicional dos filmes atuais, com agilidade na passagem por detalhes do roteiro (que quase não tem lances de enredo) e bem dependente de ótimos intérpretes. O destaque inevitável vai para Daniel Hendler, ator de outros filmes do cineasta, capaz de conquistar a platéia com uma naturalidade que pode ser algo tão pessoal de Hendler como bem construída, parte do talento do ator ao transmitir uma permanente ansiedade e insegurança bem disfarçadas pelo personagem, mas onipresentes.



A vertente judaica do diretor-roteirista, dos personagens e do seu ator principal extrapolam aspectos culturais de grupo, sendo eficiente na capacidade de atingir questões comuns para a classe média (e não só) de forma direta e acessível ao espectador. Não se trata de apenas louvar o que muitos podem considerar como "trivial" de um filme “coloquial” - um tanto aparentado aos mais “simples” de Woody Allen – ou mesmo aos últimos da série Doinel de François Truffaut; mas reconhecer a importância da sua interação com as platéias a partir de um cinema que é - no mínimo - correto e espontâneo, além de ter um roteiro desenvolvido com inventividade a partir de um argumento que poderia se perder em mera repetição de clichês, tal como nos “filmes familiares” americanos com “mensagens” prêt-à-porter previsíveis.



Mesmo que não se trate de um filme excepcional, esta produção argentina chega a se destacar na atual entressafra de qualidade a que os lançamentos de primeiro semestre no Rio de Janeiro em 2007 estão nos condenando; e pode ser interessante observar as reações do público em sessões de dois diferentes filmes estreados no Rio na mesma semana, como é o caso deste As Leis de Família e o longo, lento e cansativo chinês Em Busca da Vida, ainda que premiado em Veneza e incensado por parte da crítica. A recepção das platéias pode ensinar muito aos cineastas e críticos sobre o que um filme “menor” pode atingir, em oposição à reação de tédio antonioniano desfavorável que a linguagem pretensiosamente mais sofisticada de Jia Zhang-Ke provoca, frustrando sua melhores intenções pela dificuldade de comunicação. Não se trata de "apenas" comunicar-se com o público, mas de compartilhar vivências próximas às experiências de muitos de nós, tal como o diretor Burman compartilha o momento de seu próprio filho, Eloy Burman, no papel de filho de Ariel. Cabe ainda destacar a criação inteligente do personagem do Perelman mais velho pelo excelente Arturo Goetz em um papel de poucas palavras, em oposição à fala quase permanente de Ariel.





# AS LEIS DE FAMÍLIA (DERECHO DE FAMILIA)

Argentina, Itália, Espanha, França, 2006

Direção e roteiro: DANIEL BURMAN

Fotografia: RAMIRO CIVITA

Montagem: ALEJANDRO PARYSOW

Música: CESAR LERNER

Elenco: DANIEL HENDLER, ARTURO GOETZ, JULIETA DIAZ, ADRIANA AIZEMBERG, ELOY BURMAN

Duração: 102 minutos

Site oficial: clique aqui

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