Críticas


FRAULEIN

De: MICHAEL HANEKE
Com: ANGELICA DOMRÖSE, PETER FRANKE, LOU CASTEL
30.07.2020
Por Luiz Baez
Um melodrama alemão?

Em dois diferentes níveis, o nome deste filme antecipa algo sobre si. Literalmente, Fraulein significa senhorita, mas, à época da produção - anos 1980 -, o termo já caíra em desuso por sua distinção sexista entre solteiras e casadas. O subtítulo, Ein deutsches Melodram (Um melodrama alemão), por sua vez, sugere uma filiação ao gênero: assim como no "policial" Quem foi Edgar Allan? (Wer war Edgar Allan?, 1984), no entanto, a estrutura simultaneamente se constrói e desconstrói. Tal caráter disruptivo reafirma-se em uma segunda e menos imediata leitura. No campo das artes, Fraulein remete à canção de Chris Howland incorporada pelo austríaco Michael Haneke. O forte sotaque do britânico contrasta-se com os versos em alemão, e a sensação, dentro do contexto do longa-metragem, é a de que aos derrotados na Segunda Guerra sequer pertence o próprio idioma.

Seguindo uma corrente melodramática, o enredo apresenta a relação extraconjugal entre a germânica Johanna, funcionária do Cinema Roxy, e um prisioneiro de guerra francês. Afastando-se dessa tradição, contudo, a narrativa se deslocaliza até alcançar certa universalidade. Nesse sentido, o amante, André, atua em espetáculos de luta-livre sob a alcunha “máscara negra” (die schwarze Maske), mas essa personagem não passa de um tipo genérico, posteriormente vivido por outro homem. Se pouco interessam as particularidades de ambos, um discurso mais abrangente se delineia com o retorno do marido, presumido morto na guerra. As sequelas físicas e psicológicas de Hans dizem respeito ao horror de uma geração, sem entretanto se restringirem àquele importante momento. 

Por um lado, a decadência se manifesta na figura do antigo construtor civil limitado à fragilidade das casas por ele montadas com palitos de fósforo durante as noites. Convertido em vergonha o poderio alemão, os Estados Unidos emergiam como superpotência mundial. Nessa lógica, a influência dos costumes norte-americanos traduz-se, tal qual em Lêmingues - Parte 1: Arcádia (Lemminge - Teil 1: Arkadien, 1979), na música de nomes como Elvis Presley e Brenda Lee. Hans despreza o namorado da filha, um soldado estadunidense, e mesmo o amante da esposa, embora europeu, insere-se na cultura ianque pela prática do wrestling. No clímax, quando descobre a traição, a humilhação atinge ápice, e ele urina nas calças - mais um sintoma de sua debilidade.

Situado no pós-guerra, Fraulein - Um melodrama alemão (Fraulein - Ein deutsches Melodram, 1986) não deixa, por outro lado, de estabelecer contemporaneidade ao período histórico de sua estreia, a Guerra Fria. Ao regressar, Hans aguarda a família em frente ao cinema, com um enorme cartaz de Com a lei e a ordem (Law and order, 1953) acima de si. Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos por ocasião do lançamento, estrela essa produção hollywoodiana, donde se pode concluir um aceno ao tempo presente: a ideia de livrar o mundo das “garras do comunismo” permanecia atual, bem como as pretensões imperialistas de uma nação. Na elaboração desse imaginário, cinema e televisão exerciam papel primordial, e Haneke, inclusive, fala sobre esse manipulativo processo no documentário 24 verdades por segundo (24 Wirklichkeiten in der Sekunde, 2005).

Nessa perspectiva, o plano de abertura mostra um
outdoor de O barão de Münchhausen (Münchhausen, 1943), filme encomendado por Goebbels para celebrar um quarto de século dos estúdios UFA, ao que se seguem, dispersas, algumas de suas cenas, além de uma repetida fotografia do ator Hans Albers.  Como em A fita branca (Das weiße Band, 2009), as cores se ausentam de Fraulein, sinalizando uma época apenas concebível em preto e branco. Nos minutos finais, porém, a televisão de um restaurante exibe Münchhausen, agora em cores, acompanhado de uma risada histérica. Seja na pequena ou na grande tela, o cinema oferece promessa transformadora - vide a sequência na qual as crianças se assustam com a bruxa da Branca de Neve -, ainda que ocasionalmente se permita capturar pela ordem da dominação. Contra ela, concerne ao austríaco restituir a autonomia do espectador.*

* Semelhante preocupação desenvolve-se ao longo de sua vindoura trajetória cinematográfica, esta antecipada na imagem do jogo infantil pega varetas, signo de casualidade - ou de uma Sétima Arte apartada de sua função comunicativa - em 71 fragmentos de uma cronologia do acaso (71 Fragmente einer Chronologie des Zufalls, 1994).

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Outros comentários
    5122
  • Stella de Paula
    02.08.2020 às 08:21

    A excelente critica me despertou uma vontade tremenda de ver o filme .