Críticas


SANTIAGO

De: JOÃO MOREIRA SALLES
Com: SANTIAGO BADARIOTTI MERLO, JOÃO MOREIRA SALLES
24.08.2007
Por Carlos Alberto Mattos
COM UMA CERTA DESCONFIANÇA

Finalmente chega ao circuito o esperadíssimo Santiago, nove meses depois de ter publicada sua primeira resenha na imprensa, estreando o nosso DocBlog. De lá para cá, exibido apenas no É Tudo Verdade, o filme tem sido motivo de comentários, textos, ansiedades e (já!) influências. Jean-Claude Bernardet o incluiu entre seus “filmes-faróis” do doc contemporâneo. Kiko Goifman não nega o parentesco na trama do seu Filmefobia.



Mas o que será de Santiago no contato com o público?



É difícil imaginar. Em princípio, interessa a espectadores aficcionados pelo cinema documental. Quase todas as referências o definem como uma reflexão sobre como se filma, como se monta e como se apresenta uma pessoa na tela. Coisa de cinéfilo-cabeça, aparentemente. Mas é bom que se diga: Santiago é bem mais que isso.



Se não conseguiu montar seu filme em 1992 (João parece estar sempre em crise sobre o que fazer de sua carreira de documentarista), e o fez agora como um exame de consciência de autor, ele teve a generosidade de não deletar o Santiago que filmou. Original e reflexão convivem – criticamente, é claro – e não se anulam mutuamente. Assim, o espectador que não for siderado pela metalinguagem pode simplesmente usufruir o retrato desse mordomo culto e fantasioso. Santiago Badariotti Merlo era um nobre sem estirpe, uma fascinante contradição de classe, um ser trágico. Parecia personagem saído de um filme de Losey ou Visconti.



O passeio por seus escritos enciclopédicos é fascinante por si, como um conto de Borges. Por outro lado, os ecos de uma época em que a mansão dos Moreira Salles representava o topo da burguesia brasileira chegam com um misto de nostalgia e fatalidade. Aquele mundo podia parecer belo e natural, mas estava fadado a se tornar mais um cartão datilografado no arquivo do seu mordomo.



Retalhos de uma história familiar e perfil autobiográfico de um grande personagem estão, portanto, indissociavelmente ligados à meditação do documentarista sobre seus métodos de trabalho. Nesse aspecto, Santiago alia duas das principais correntes do doc moderno: o relato em primeira pessoa e a auto-reflexividade (o filme pensa a si mesmo). E ainda incorpora o tempo como matéria que age sobre o resultado. O filme de antes é radicalmente diferente do que veio a se tornar.



Existem nobres precedentes. Cabra Marcado para Morrer traz 17 anos embutidos no projeto, que provocaram uma mudança brutal no país e no filme. Jonas Mekas – que tanto Coutinho como João adoram – deixa seus negativos "descansarem" por uma ou mais décadas para depois revisitar o material com o olhar completamente diferente da época em que registrou as imagens.



Em Santiago, o tempo produziu uma autocrítica do realizador, que é não só em relação à sua conduta diante do personagem, como também em relação ao modelo de doc em voga. O preço que João Moreira Salles decidiu pagar para resgatar o perfil de Santiago e “atualizar” o seu filme foi a auto-exposição, o reconhecimento de uma culpa. Afinal, vivemos um tempo de documentaristas culpados.



Santiago pede que o dissequemos como a um cadáver inteligente. A certa altura, a voz de João (digo, Fernando) nos aconselha: “Tudo deve ser visto com uma certa desconfiança”. OK, isso inclui o próprio filme agora apresentado. As perguntas se acumulam:



- Por que, afinal, João não terminou a montagem em 1992?

- Ele filmava Santiago e a “casa da Gávea” com vistas a um filme de cinema ou como mero registro de memória familiar, portanto em regime de total intimidade?

- O que aparece como arrogância do diretor não seria, no contexto original, apenas fruto de longa convivência e de uma formação espartana estrangeira, atitudes bem-vindas e compreendidas por Santiago?

- As freqüentes interações do mordomo com a câmera teriam inviabilizado uma montagem transparente, só possível através de um comentário mediado pela reflexividade?

- Teriam as falhas de luz, enquadramento e invasão do campo visual perturbado de tal maneira a qualidade do material que só dessa forma bruta se poderia exibi-lo?



Enfim, do que devemos seguir desconfiando? Do que é dito? Do que deixou de ser mostrado? Dos escurecimentos que podem estar escondendo coisas ainda mais difíceis de revelar?



Antigamente, pensava-se que o documentário tinha por função básica oferecer respostas. Santiago, assim como o Jogo de Cena de Coutinho, nos mostra que o doc vive mesmo é de perguntas. Expor-se a esses dois filmes é compreender melhor a riqueza desse tipo de cinema.



P.S. – Ver Santiago no cineminha do Instituto Moreira Salles, no qual se converteu o seu próprio cenário, é experiência irresistível para fetichistas.



Visite o DocBlog do crítico.



SANTIAGO

Brasil, 1992/2006

Direção e texto:
JOÃO MOREIRA SALLES

Diretora assistente: MÁRCIA RAMALHO

Fotografia: WALTER CARVALHO

Montagem: EDUARDO ESCOREL, LÍVIA SERPA

Som direto: JORGE SALDANHA

Narração: FERNANDO MOREIRA SALLES

Produção executiva: MAURICIO ANDRADE RAMOS

Elenco: SANTIAGO BADARIOTTI MERLO, JOÃO MOREIRA SALLES

Duração: 79 minutos

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