Críticas


FESTIVAL DO RIO 2007: SÍNDROMES E UM SÉCULO

De: APICHATPONG WEERASETHAKUL
Com: JARUCHAI IAMARAM, SOPHON PUKANOK, ARKANAE CHERKAM, SAKDA KAEWBUADEE.
23.09.2007
Por Luiz Fernando Gallego
OUVINDO IMAGENS (COMO QUEM VÊ MÚSICA)

Um modo simpático de se aproximar de Síndromes e um Século (seja lá o que este título signifique) seria o de se deixar levar pelas cenas, imagens e diálogos como quem escutasse uma música pela primeira vez (daquele tipo que se convencionou chamar de “música clássica”).



Estamos na Tailândia em uma espécie de ambulatório e hospital, fora do perímetro urbano, com muito verde, árvores, brisa, plantas, orquídeas, lagos, etc. Uma médica entrevista um colega com questões objetivas sobre sua prática profissional e muitas outras nem tanto (que formas ele prefere desenhar, por exemplo: círculos, triângulos...?). A mesma médica atende um monge idoso que lhe conta de dor nas juntas desde que caiu da cama por seus sonhos repetidos com frangos lhe perseguindo, o que ele atribui a maldades infantis que fizera a estes animais. A médica fala em ácido úrico no sangue; o monge lhe oferece ervas para uma tensão que ele percebe nela com questões financeiras - que o espectador já soube serem reais; um jovem monge acompanha o mais velho e será visto em tratamento odontológico, confessando ao dentista que tivera o sonho de ser DJ, mas uma força irresistível o fez aceitar as vestes laranja de monge; o dentista fala de sua carreira paralela de cantor e até canta trechos de uma canção.



Algumas destas situações serão expandidas: o médico entrevistado fará um pedido de namoro inopinado e desajeitado àquela que o entrevistara; ela, então, lhe conta de um relacionamento indefinido com um cultivador de orquídeas; o dentista será visto cantando em público, assim como escutaremos (e veremos) um número de seu violonista em solo, sem cantoria; o dentista-cantor reencontra o monge no mesmo hospital, à noite: conversam - e o que poderia ser o prosseguimento desta conversa é interrompido por cenas análogas às primeiras, agora em ambiente citadino, em um hospital com aparência de excelência técnica.



A mesma médica entrevista o mesmo colega, sendo que agora a câmera está centrada no rosto dela, quando anteriormente o plano fechado estava nele; o mesmo monge idoso é consultado por um médico (não mais a mesma doutora) e a câmera está posicionada de forma tal que podemos ver o monge de frente e o médico de costas - ao contrário da situação semelhante no início do filme, quando só víamos o monge de costas; o mesmo dentista trata dos dentes do monge mais jovem, só que em silêncio, com máscara de proteção asséptica. Os desenvolvimentos deste segmento serão outros, diferentes da primeira metade do filme.



Tal como em uma peça de “música clássica” podemos escutar “temas” (linhas melódicas mais ou menos identificáveis) que, depois de expostos, poderão ser desenvolvidos com modificações (variações melódicas): o mais recente filme de Apichatpong Weerasethakul parece convidar o espectador a “ouvir” suas imagens – nem só pelo que é dito em cena, mas pelo todo áudio-visual que é apresentado de duas formas parecidas, porém diferentes, um pouco como se fossem “duas vidas” da Veronique que Kieslovski filmou em 1999.



Como no jazz menos tradicional, muitas vezes a linha melódica não vai retornar ao “tema” inicial e muita coisa vista seguirá em ponto de fuga, por caminhos abertos que ficam... em aberto...



Há outros pontos de alusões a semelhanças (que são diferenças) ao longo do filme. Por exemplo: assim como o dentista é simultaneamente cantor em sua primeira “versão” apresentada - e o monge teria uma inclinação para ser DJ - , o médico entrevistado começou seus estudos para ser farmacêutico, mas sentindo falta de trabalhar com pessoas, passou para a prática clínica. Na "segunda parte" ele explica que fez especialidade em doenças hematológicas por conta de ter uma irmã com doença nesta esfera. Temos diferentes apresentações de dualidades em inclinações vocacionais.



Outro exemplo - este exclusivamente visual, ou seja "cinematográfico" - se refere a travellings suaves sobre bustos (de pessoas importantes, provavelmente) ou estátuas de corpo inteiro de possíveis personalidades tailandesas em atitudes algo solenes. Do mesmo modo, vemos movimentos semelhantes de câmera passeando em frente a imagens de Buda.



Assim como a medicina científica (fala-se em colesterol, ácido úrico, talassemia, etc) é acompanhada de menção a “chakras” por parte dos mesmos médicos do grande hospital que falam em termos bem técnicos. Além de já termos visto as ervas do monge idoso na primeira parte, onde também se discutiu brevemente sobre “karma” e reencarnação. Dualidade de aproximações do adoecer e do estar no mundo?



O cineasta tinha pais médicos e cresceu residindo em hospital; e diz que ainda gosta dos odores de assepsia que lhe recordam ter visto muita gente adoecendo - e morrendo - sem que, na época, isso lhe trouxesse questões filosóficas: “era apenas gente que vinha e ia”. Esta “leveza” frente a temas que geralmente demandam gravidade de abordagem se faz notar no desenvolvimento livre deste filme que nos apresenta a personagens e situações que vão aparecendo, reaparecendo em outra “formatação” e desaparecendo: chegam e “vão” embora da tela, à medida que surgem seqüências “desconctadas” do que já foi visto anteriormente. Tal como o que já foi apelidado de “free jaz” (muito antes de o termo virar nome-clichê de evento patrocinado com pouco jazz e nada “free”): a liberdade de “variar” na música sem que houvesse nem mesmo um “tema”.



As cenas finais seguem este caminho (ou descaminho, para muitos), chegando a lembrar o final de O Eclipse, de Antonioni, com a diferença de que no filme de 1962 as cenas finais em ambientes dos quais os personagens haviam desaparecido eram um tanto desalentadas e angustiantes. Aqui, não necessariamente: se um exaustor engole uma fumaça branca (em um subsolo hospitalar com máquinas) sugerindo um “buraco negro” que suga tudo, também há tomadas de ruas ensolaradas com dezenas de pessoas se exercitando em aeróbica.



Por outro lado, o exaustor-“buraco negro” é uma possível rima visual com outra cena vista antes, de um eclipse solar. Pode ser uma rima sem ser uma solução. Ou nem mesmo uma rima. Pois depende do olhar subjetivo: assim como o filme faz uma espécie de “associação livre”, o espectador que se deixar levar terá sua cota de associações íntimas mais ou menos prazerosas. Quem não aceitar tais possíveis regras do jogo e não se permitir uma “atenção flutuante” para com o que vê na tela - como quem escutasse música - e para o que possa ser evocado de dentro de si mesmo... talvez fique até irritado.



Os termos psicanalíticos “atenção flutuante” e “associação livre” não são impertinentes para pensar a forma da narrativa e seu possível “diálogo” com a platéia: afinal, para o “conteúdo” do enredo, o diretor disse estar fazendo um experimento de “recriação das vidas de seus pais antes de ele ter nascido”. O que lembra o belo verso final de Fitzgerald em O Grande Gatsby: E assim vamos nós, barcos contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado. E é a partir de material do passado que os artistas escrutinam o presente e questionam (quando não antecipam) nosso futuro - se não o futuro factual, o das próprias formas artísticas.



# SÍNDROMES E UM SÉCULO (SANG SATTAWAT)

Tailândia / França / Áustria, 2006

Direção e Roteiro: APICHATPONG WEERASETHAKUL

Elenco: NANTARUT SAWADDIKUL, JARUCHAI IAMARAM, NU NIMSOMBOON, SOPHON PUKANOK, ARKANAE CHERKAM, SAKDA KAEWBUADEE.

Duração: 105 minutos

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