Críticas


ULTIMA AMANTE, A

De: CATHERINE BREILLAT
Com: ASIA ARGENTO, FU’AD AIT AATOU, CLAUDE SARRAUTE
27.06.2008
Por João Mattos
UMA SENHORA EXPERIENTE

(Texto escrito durante o Festival do Rio 2007 quando este filme foi exibido com o título Uma Velha Amante)



Com 30 anos de cinema, Catherine Breillat é uma mulher falando sobre as mulheres via filme – e também pela literatura ocasional que escreve. Suas mulheres são múltiplas em contradições, sentimentos e valores, perturbando as mulheres comuns, irritando e chocando as feministas - que a classificam de traidora, misógina enrustida, etc -, provocando os homens de todas as latitudes. Numa das primeiras imagens de Anatomia do Inferno (2004, exibido no Festival do Rio daquele ano), candidata a suicida que está cortando os pulsos num banheiro fétido, responde a um homem (feito pelo famoso ator pornô Rocco Siffredi ) a pergunta do porquê estar cometendo este ato tresloucado: “Por que sou uma mulher”. Típica blague desta artista.



À qualquer uma (um, vamos dar prioridade à elas quebrando as regras gramaticais) que conheça essa obra, despertava imensa curiosidade sobre o que ela faria com a arquitetura do chamado filme de época (se passa no século XIX), e ao adaptar um famoso romance acusado de obsceno quando lançado (1851, de autoria de Jules Barbey d´Aureville), que teve uma obscura versão para a TV nos anos 70, e que sempre foi comparado com clássico da literatura, o epistolar Ligações Perigosas (1782), de Choderlos de Laclos. Não por acaso este A Última Amante começa com um letreiro onde se faz uma homenagem à Laclos, fato que será retomado num instante significativo da trama por uma personagem, que faz contraponto e paralelo sagaz entre a moral do século XVIII e o de XIX.



O primeiro plano nos exibe o veterano Michel Lonsdale – que infelizmente só aparece depois em mais umas três cenas – atracado com as mãos numa ave que saboreia com ansiedade e prazer durante uma refeição em cenário chique. Na textura daquela imagem, e em outras espalhadas pela narrativa – a lambida do sangue no peito, o degolar de uma ave*, o plano médio que mostra um médico recolhendo o sangue dos despojos de um aborto natural -, existe uma carpintaria de imagens cativantes em simplicidade e eficiência, que podemos afirmar, burla um pouco o panorama comum do “filme de época”. Antes um esclarecimento: se o termo, vasto em valor, pode tanto batizar um filme passado na China da década de 30 do século XX, como de um país no começo do século XII, ou no final do III, enfim qualquer era não contemporânea, não dá para deixar de constatar que por uma série de razões, o termo quando aplicado costuma - segundo o senso comum que acabou se estabelecendo - se referir à cinema passado no século XVIII e XIX (embora os três anteriores ao 18 também, em menor escala). E há um inegável ar de pompa e circunstância - brincando com o título de uma famosa série inglesa de temas musicais do começo do século XX - nesse cinema, como se as roupas, a formalidade dos traquejos sociais esbanjasse uma inteligência pré-moldada, o que talvez explique a má vontade que este tipo de filme recebe, inclusive quando traz diretores (James Ivory, sobretudo) que o usam com muito mais propriedade do que aparentam. Mas é óbvio mesmo que existe um monte de obras no cinema - e de séries, mini-séries e filmes televisivos – bastante banais ao encenarem este subgênero.



A Última Amante, tanto foge do trivial, como não chega a operar uma desconstrução, uma transgressão (palavras tão admiradas), dos caracteres deste estilo de cinema; traz um bem-vindo clima tenso, e simultâneo a isto, um flexibilizar na evolução relato, que não chega com intenções de subversão por subversão, e sim do tratamento mais sintonizado com o ideário da diretora - mesmo por ser possível subverter sem que isso esteja de acordo com uma visão mais singular, só pelo mero exercício. Breillat quebra esse bom-tom na representação do subgênero que costuma escamotear o que está por trás desse verniz: eram tempos em que uma série de coisas (as técnicas de higiene pessoal e dos espaços públicos, conservação e elaboração dos alimentos, etc), eram precárias e não deviam aparecer em demasia. Idem a ciranda virulenta de sentimentos amorosos e sexuais que circundam esses personagens (servindo isto à sociedade como um todo no período, que valorizava a contenção nas emoções), que também deve permanecer latente, nas entrelinhas.



A narrativa nos mostra o conflito causado pelo anúncio do casamento de um jovem homem conhecido pela voracidade lascívia, com uma moçoila ingênua típica da final flor da aristocracia do período. Ele tem um notório caso amoroso há anos com uma cortesã de má-fama, filha de uma duquesa com um toureador, esta interpretada por Asia Argento, cuja escolha também estimulava a curiosidade dos admiradores de Breillat. Embora possam haver opiniões díspares, ocasionalmente benevolentes, parece nada provável achar por aí muita gente que eleve os dons de intérprete da multinacional Mademoiselle Argento (fez cinema em língua italiana, inglesa, francesa, em vários países) aos píncaros (embora ela tenha se revelado uma sensível cineasta em Maldito Coração, e tenha atuado em filmes de qualidade). No máximo, em termos positivos, alguém que ela é uma boa atriz, não chegando aos extremos negativos dos que não a apreciam.



Permitam-me a opinião em primeira pessoa e uma hipérbole: considero a dita a pior atriz do cinema mundial em atividade. Aqui, ela tem uns 30 segundos de boa perfomance, quando aparece em close num jardim, conversando com seu amante, logo depois de fazer um pequeno e amoroso corte na face do sujeito.



De resto, ela é ela mesmo, aquilo lá. Em sua primeira aparição, levanta lânguida da cama depois de um diálogo, e olha para o pobre Lonsdale com algo que pela construção facial expressa está mais para dor causada por uma úlcera perfurada do que olhar de fúria sentimental; e com birra, não amargura de mulher rejeitada, é com o que parece o que ela nos oferta no final do primeiro encontro com o homem, quando ele a avisa que o relacionamento entre ambos acabou. A incompetência de Argento serve até como dado irônico inadvertido, já que ela interpreta personagem de suma vulgaridade e cujos encantos femininos eram postos em dúvida justamente pelo homem que vai manter este caso rumoroso com esta cortesã, como ele conta no começo do longo flashback. Logo, temos uma confusão instigante sem querer: canastrona que atua mal como personagem vulgar, de fascínio incompreensível a um primeiro olhar, mas real o suficiente para perturbar um homem com tanta força; e que a fraqueza da atriz só torna mais enigmática. A coisa toda é tão mais curiosa ainda por ter o estreante (!) em cinema Fu’Ad Ait Aatou uma atuação de muita categoria na exposição do homem conturbado, sobretudo em um determinado close dele de perfil esquerdo, num dos momentos em que divaga sobre seus sentimentos em ebulição. Nem parece que ele era inexperiente em cinema.



Em poucos planos e minutos passados na Argélia, uma atmosfera forte é evocada, cenas boas são criadas, como o ataque trágico, a descoberta do mesmo com o desespero com o grito (plano distante e seco que não mostra as pessoas), e o sexo convulsionado que nem mesmo a histrionice de Asia estraga. Após o término do papo com a senhora, porém há uma queda acintosa na qualidade da obra. A partir daí algo como a meia-hora final da narrativa, este filme, curioso notar, acaba parecido com outra atração deste festival carioca, Fay Grim, de Hal Hartley – embora lá esta impressão dure menos: os 15, 20 minutos conclusivos. Hartley e Breillat, até então, parecem fazer o melhor cinema possível: o que demonstra uma construção estética que supera o molde em que está inserida (respectivamente, o thriller de conspiração política e o filme de época), e que para aqueles que os conhecem, traz a assinatura de quem a fez; e ao espectador que não conheça a obra de nenhum dos dois, a noção muito válida de que eles estão fazendo algo que não se parece com o que costumam ver nos tipos de cinema retratados. Mas de repente as convenções parecem emergir sem o brilho da expressão própria dos artistas, e a banalidade que era evitada, se instaura.



Em A Última Amante, some a latência da paixão voraz que assombrava os acontecimentos, e uma rede de conflitos de bom potencial termina diluída mesmo que haja momento correto ou outro - como a coisa do aborto. No final, o amor louco mais parece um hábito do que algo tão denso que era a maneira como aquilo nos havia sido transmitido até então; a fraqueza é tanta que quase chega a anular o que se passara até este instante. A sensação final é clara: pujança apenas razoável para uma obra de Breillat, mas superior a dos filmes de época produzidos em série.



OBS: Para os fãs de Breillat: o filme está recheado de pontas de atrizes de obras anteriores da diretora: Amira Casar (Anatomia do Inferno), Isabelle Renauld (Parfait Amour), Sarah Pratt (Brève Traversée, exibido por aqui em TV por assinatura), e Caroline Ducey (Romance, o mais famoso no Brasil e no mundo).



* vegetarianos e/ou politicamente corretos, tremei (como as pessoas na sessão a que compareci, aos gritinhos e com um grande berro): ao contrário dos filmes dos EUA, não aparece nenhum letreiro nos créditos afirmando “que nenhum animal foi ferido durante a realização deste filme”: a bichinha deve ter ido mesmo para a eternidade galinácea, quem sabe usada depois como pasto da equipe.



# A ÚLTIMA AMANTE (UM VIEILLE MAITRESSE)

França, 2007

Direção e roteiro:
CATHERINE BREILLAT

Elenco: ASIA ARGENTO, FU’AD AIT AATOU, CLAUDE SARRAUTE, ROXANNE MESQUIDA, MICHEL LONSDALE

Duração: 114 minutos

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