Críticas


SOMBRAS DE GOYA

De: MILOS FORMAN
Com: JAVIER BARDEM, NATALIE PORTMAN, STELLAN SKARSGARD.
25.12.2007
Por Luiz Fernando Gallego
O SONO DA RAZÃO

O título brasileiro de Goya’s Ghosts, o primeiro filme do diretor Milos Forman no século XXI, não foi o mesmo da tradução nacional (pela Editora Cia. das Letras) de sua versão em forma de romance (Os Fantasmas de Goya, livro assinado também pelo cineasta e por seu roteirista Jean-Claude Carrière). Provavelmente, para que um público desavisado não o tomasse como uma história sobrenatural de fantasmas aterrorizantes: daí terem escolhido Sombras de Goya - o que até pode parecer um estudo técnico sobre o uso de sombreamento nas gravuras do grande pintor espanhol. Mas seja qual for o título, filme e livro trazem outro terror ainda pior, porque real e dispensa o sobrenatural: confissões sob tortura, “racionalização” com base religiosa para instituição de atos de sadismo, sofismas e desuso de idéias nobres para a mesquinhez do poder, guerras... Enfim, o "sono da razão" que "produz monstros" como na conhecida gravura de Goya.



A carreira norte-americana de Forman teve início em 1971, também com roteiro de Carrière no - hoje - pouco lembrado Taking Off (inédito em VHS ou DVD e que aqui recebeu o péssimo título de Procura Insaciável). Desde então, sua obra vem contemplando, em quase igual proporção, filmes passados na contemporaneidade - como Um Estranho no Ninho (’75) e O Povo contra Larry Flint (’96) - e filmes de época: dentre outros, Amadeus, (’84), e Valmont, uma história de seduções, (’89), a segunda colaboração de Carrière e Forman que agora voltaram a trabalhar juntos para este esperado retorno do cineasta, sete anos depois de O Mundo de Andy, uma das incursões mais “sérias” de Jim Carrey.



A reação da crítica internacional para com o resultado do novo e aguardado filme de Forman foi de decepção - e sua carreira junto ao público não vem sendo excepcional. Entretanto, temas apreciados e recorrentes na obra do cineasta também estão presentes em sua nova obra. Temos o cerceamento à liberdade de pensamento e de expressão (Larry Flint), o uso indevido de asilos psiquiátricos (Estranho no Ninho), o questionamento das autoridades e poderes (Hair, de ‘79) e o uso ficcional de personalidades históricas como gancho e pretexto (Amadeus). Uma inexistente fidelidade ao Mozart real não era o que mais interessava em Amadeus - e nem mesmo importava a fidelidade estrita à fonte literária de Valmont, o romance epistolar de Laclos que rendeu outro filme na mesma época - só que homônimo do livro, Ligações Perigosas, realizado por Stephen Frears - e que deixou, injustamente, a versão de Forman e Carrière menos conhecida e valorizada.



A dupla se serve agora de Goya e de seu tempo conturbado para discutir o abuso dos sistemas de poder, abusos que o cineasta sofreu na pele, tendo perdido seus pais para Auschwitz e sua liberdade de expressão para os tanques soviéticos após a “Primavera de Praga”, quando teve que sair da então Tchecoslováquia para os Estados Unidos e reiniciar sua carreira.



A Inquisição espanhola e seus desmandos retratados neste filme remetem ao uso da tortura, em várias épocas (e nos dias de hoje): um incidente prosaico na vida de uma jovem filha de comerciante no final do século XVIII ganha interpretação de prática judaica, proibida em um país cujo poder da igreja Católica podia nublar o poder do Rei, um ridículo Carlos IV com sua corte provinciana.



O pintor Goya é recriado como personagem que é ponto de ligação entre dois outros, ficcionais e a partir dos quais se desencadeia o drama central. Ambos estariam tendo seus retratos pintados por Goya: Lorenzo, um padre que serve fielmente ao “Santo” Ofício inquisitorial, e a mocinha mencionada acima. Além destes, também estão sendo pintadas a família real e a desagradável Rainha Maria Luísa (estes dois quadros existem, de fato).



O pano de fundo da Revolução Francesa e, posteriormente, da invasão ibérica por Napoleão, com o breve reinado espanhol de seu irmão, José, que provocou uma enorme reação popular - e a posterior derrota napoleônica para os ingleses - que colocaram no trono outro rei medíocre e fantoche - são fatos históricos redirecionando as vidas dos personagens. Talvez sejam os muitos episódios reais e as muitas reviravoltas do enredo novelesco - em menos de 120 minutos de filme - os elementos responsáveis pelo que tenha sido considerado insatisfatório no desenvolvimento cinematográfico da história narrada.



Outro ponto capital que o filme aborda é o da manutenção do poder abusivo por parte de um mesmo personagem, seja com discurso obscurantista religioso, seja recorrendo – paradoxalmente - a idéias iluministas (mas filtradas a serviço do autoritarismo e da intolerância). Forman, que sofreu sob o nazismo e sob o comunismo soviético, sabe do que fala sobre ideologias antagônicas, mas usadas de modo perverso para práticas ditatoriais - em que os opostos se aproximam.



Sem atingir a mesma magnitude de Amadeus, este Sombras de Goya se insere na linhagem de filmes (e romances) de ambientação histórica onde a ficção se apoia em painéis factuais para também tratar de idéias. Se o acúmulo de situações pode ser problemática para muitos espectadores, as situações em si mesmas merecem ser sempre recordadas como um triste retrato do pior de nossa condição humana.



As terríveis cenas de calabouços da Inquisição - e de um manicômio -, assim como cenas de guerra (estas, nem tão chocantes como as famosas gravuras de Goya, Os Horrores da Guerra, também mostradas no filme) são contrabalançadas pela beleza da fotografia e adequação da trilha musical (em parte, original para o filme, mas em grande parte recorrendo a trechos pré-existentes). E pelo uso de obras de Goya que servem à abertura e aos créditos finais, em detalhes e recortes de um esteta como é Forman. Além de tudo, temos o melhor desempenho de Natalie Portman desde Closer – Perto Demais, em dois papéis, com as diferentes belezas de Alicia e de Inês, sendo que Inês aparece em dois momentos diversos, com 15 anos de intervalo entre eles. Sua segunda aparição é das cenas mais comoventes - e chocantes. Assim como o “quadro” da tomada final, uma das muitas “pinturas” de Forman, mais ou menos inspiradas pelas imagens de Goya.



# SOMBRAS DE GOYA (GOYA’S GHOSTS)

EUA, Espanha, 2006

Direção: MILOS FORMAN

Roteiro: JEAN-CLAUDE CARRIÈRE e MILOS FORMAN

Fotografia: JAVIER AGUIRRESAROBE

Direção de Arte: EDUARDO HIDALGO, ANA VIANA.

Música: VARAN ORCHESTROVICH BAUER e JOSÉ NIETO.

Elenco: JAVIER BARDEM, NATALIE PORTMAN, STELLAN SKARSGARD, RANDY QUAID, MICHAEL LONSDALE.

Duração: 117 minutos

Site oficial: www.goyasghoststhefilm.com

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