Cada décimo de segundo de Tracey Despedaçada problematiza o dado da representação estética dos seus primados de dramaturgia e nos leva
a questionar se o expediente usado é o melhor. Questionar talvez não seja a única palavra cabível. Confrontando a sensação de que isso é válido ou não, aderindo sem hesitar ao estilo adotado ou não, rejeitando-o ou não, parece impossível a cada espectador da obra, seja quem seja, seja em que local for, não ter que lidar com o fastio abissal que nos acomete a partir da fruição da experiência formal proposta.
80 minutos de duração. Com sinceridade, em 80 segundos duvido que não haja alguém exaurido. Ante ao desenrolar dos fatos de Tracey Despedaçada, toda a narrativa conduzida pelo director (Bruce MacDonald, muita TV no Canadá, o correto neo-noir B Identidade Trocada), faz a tela quase que explodir em fragmentação extremada a cada imagem. Poucos minutos, em especial perto da conclusão e o plano derradeiro, são comuns; o recurso da tela dividida (o chamado split screen), domina com voracidade, não mais como uma mera divisão em dois, até três imagens cada plano, mas várias e várias, como se houvesse uma enxurrada de janelinhas sendo abertas em cascata, como sucessivos hipertextos em telas de um navegador da Internet. O trio de montadores Jeremy Munce, Matthew Hannah e Gareth C. Scales devem ter se divertido à beça equacionando a (des) estrutura disto tudo, que parece ser uma adaptação fiel ao que já havia como arquitetura no romance de uma autora iniciante chamada Mauren Medved – escritora ela mesmo do roteiro.
A trama descrita, óbvio, poderia sê-lo feita de outra maneira na exibição do manacial - e põe manancial nisso - de problemas que perturbam a vida da adolescente (15 anos), Tracey, ridicularizada na escola por ter um corpo ainda não amadurecido, com pais que a chamam e ao irmão de acidentes, mãe que vegeta em frente à TV, irmãozinho que gosta de latir, etc; e que para escapar da realidade imagina que faz carreira no cinema ou no mundo do rock, vislumbra um romance com o novo aluno esquisitão-sombrio com ar de rebelde (bom momento). Claro que qualquer esquema formulativo extremado de estética o é com a intenção deliberada de provocar perguntas sobre seu valor e aplicação. Isso é esperado. Mas ainda que tenha cenas esparsas de talento - o encontro com o cara sorridente e idoso no ônibus, esta só pela compoisção visual interessante, não quer dizer nada; a discussão na mesa de refeições com o guri latindo para o pai pelo que pode ser a primeira vez, a total discrepância entre o sexo no carro imaginado, de muita delicadeza e candura erotica, e o praticado, etc - Tracey é previsível em sua ordenação, banal na maneira como se constrói (lembra neste sentido, Time Code, de Mike Figgis, outra experiência técnica-estética muito assinalada). Os mencionados minutos de tela normal podem ser antevistos com total precisão; dá para saber quando eles vão entrar, querendo ao mesmo tempo relaxar o olhar daquela picotação toda, e também trazer uma tensão de que algo iminente de ruim - bem, pior ainda cabe com mais propriedade - nos será dito/comentado/revelado na narração em primeira pessoa - muitas vezes encarando a câmera - por Tracey.
Há no calvário de Tracey um certo parentesco com outra personagem-título de um obra-prima sobre trajetória similar de uma moça da mesma faixa etária. Desejada esta semelhança assim ou não, fato é que esta menina canadense parece uma Mouchette (1966, de Robert Bresson) da era da linguagem digital; mas se aquela era de acordo com o subtítulo brasileiro, uma Virgem Possuída, a angústia da moderna é mais terrena, menos densa que a do gênio francês. Isto não se deve à linguagem aqui empregada, à uma suposta superficialidade do olhar ultra fragmentado do momento pós-pós-moderno que vivemos, contra a superiodade do utilizado por Bresson, que como qualquer cineasta teve momentos mais (Mouchette é um deles) ou menos felizes - fora que ele inspirou um bom número de mimetizadores neobressonianos de filmes muito mais rasos do que este aqui. A aplicação é que está longe de grande resultado.
Sobressai-se porém mais uma atuação de Ellen Page, que está em franca ascensão. Ela ganhou alguns prêmios ano passado como a menina que engana o pedófilo de Menina.Má.Com, e tem além de Tracey, três filmes lançados (salas normais) ou sendo lançados (festivais e mostras) em 2007, dois quais (An American Crime e Juno), provocando rumores positivos. O papel que a fez famosa (o insignificante e com poucas falas no terceiro X-Men não vale como passaporte) já nos dava a noção de que ela superepresenta, o que faz aqui de novo. E daí? Nos esgares fortes para a câmera, na forma como quase que se impõe ao meio, na elevação da voz e na dinâmica do corpo, sempre além do limiar do razoável, ele pode exagerar, mas o faz com vigor, pujança, lógica. Afetação que tem serventia. A guria tem uma catadura fílmica rara, bem como coragem notável na escolha do repertório e dos papéis. No ultimo plano ela tem que mostrar uma gama forte e ampla de sentimentos subentendidos, e consegue. Tem tudo para ser uma das sensações dos próximos anos no cinema de língua de inglesa. Pequena notável.
# TRACEY DESPEDAÇADA (TRACEY IN FRAGMENTS)
Canadá, 2007
Direção: BRUCE MACDONALD
Elenco: ELLEN PAGE, ARI COHEN, MAX MCCABE LOKOS, ERIN MCMURTRY
Duração: 80 minutos