Críticas


SOBREVIVENTE, O

De: WERNER HERZOG
Com: CHRISTIAN BALE, STEVE ZAHN, JEREMY DAVIES
15.12.2007
Por Luiz Fernando Gallego
FICÇÂO NASCIDA DE DOCUMENTÁRIO

Se o cinéfilo acha que já viu tudo de ruim que pode acontecer em campos de prisioneiros de guerra em A Ponte do Rio Kway, de David Lean, ou em Furyo – Em Nome da Honra, de Nagisa Oshima, o novo filme de Werner Herzog pode fazer o espectador descobrir que o que supunha ser o pão que o diabo amassou para Alec Guiness no filme de Lean há cinqüenta anos atrás, fosse um brioche - perto do que passa o personagem de Christian Bale neste O Sobrevivente.



Esqueçamos o quanto o cinema americano estereotipou os orientais como vilões em filmes de guerra: campos de prisioneiros não costumam ser exatamente ‘spa’s de luxo - e o ser humano é capaz de crueldades sempre inimagináveis, independente de origem étnica. Não é bem a questão política nem a guerra criticada por alto, en passant, que interessa a Herzog: ele está em seu ambiente cinematográfico, fascinado ao contar mais uma história de alguém que existiu de fato e com temperamento intensamente determinado a enfrentar desafios sobre-humanos: seja contra seus semelhantes que o oprimem, seja – o que parece mais atrair Herzog – em relação à natureza. Uma pequena cena deste filme é exemplar: o que deve ter sido uma aldeia, agora abandonada, surge praticamente recoberta pela vegetação que deixa apenas partes de telhados à mostra.



O Sobrevivente começa com um pequeno filme-dentro-do-filme exibido para pilotos da Marinha que vão cumprir uma missão sigilosa no Laos. A intervenção americana da década de 1960 no extremo oriente ainda não teria assumido suas maiores proporções. No tal filminho é dito que, em caso de perigo na selva, pode-se descobrir que a natureza é nossa amiga e aliada. Um soldado gozador faz piadas, ridicularizando os conselhos algo ingênuos da projeção, mas a maior (e dramática) ironia só se fará notar mais adiante quando se desenrolar o episódio realmente ocorrido na vida de Dieter Dengler, um dos soldados da platéia que está vendo o filmete informativo.



Dengler, ele mesmo, esteve antes de morrer (em 2001) em um dos mais apreciados documentários de Herzog, cineasta que nos últimos anos não vinha quase se dedicando a filmes de ficção depois de uma série de, hoje, já clássicos: O Enigma de Kaspar Hauser, Aguirre - a Cólera dos Deuses e Fitzcarraldo. O jejum ficcional de quase duas décadas veio a ser quebrado apenas depois da virada do século, mas de um modo geral seus filmes não vinham tendo distribuição comercial no Brasil, com a recente exceção de O Homem Urso, ainda um outro documentário.



O Pequeno Dieter precisa Voar seria a tradução para o título do que Herzog filmou em 1997 com o próprio piloto que caiu no Laos em 1966 e foi incrivelmente submetido a torturas físicas, mal alimentado e, juntamente com outros cinco prisioneiros intensamente vigiados, se viu até mesmo acorrentado (eram presos pelos pés e uns aos outros) à noite, tornando sua fuga quase impossível.



“A selva é a prisão” lhe diz outro prisioneiro (‘Gene’, interpretado por Jeremy Daves), um derrotista assustado que resiste a aderir aos planos de fuga. O que Dieter teria passado em seguida, na selva, juntamente com outro companheiro (‘Duane’, interpretado por Steve Zahb) só faz lembrar Aguirre e Fitzcarraldo nas obras mais antigas de Herzog. Em situação piorada.



Os que tiveram oportunidade de assistir Little Dieter needs to fly em uma das mostras do "Tudo é Verdade" carioca já há alguns anos, dizem que o doc é superior a esta versão ficcional. Quem não conhece o outro filme, no entanto, terá motivos de sobra para louvar o retorno do diretor ao cinema de ficção – ainda que, como ele prefere, inspirada em fatos e personagens reais. A adrenalina que o filme provoca não se sustenta em truques manjados de roteiro, mas na verossimilhança da narrativa que conta com um cineasta mais do que experiente, capaz de capturar o olhar do espectador com sua câmera, fluente como o teclado de um repórter e hábil como a pena de um escritor de romances de aventuras. Apesar de o título sugerir que Dengler é um sobrevivente, a tensão domina a platéia todo o tempo. As torturas a que ele é submetido são chocantes; e as adversidades na selva, assustadoras.



Os atores colaboram para a perplexidade que o filme provoca: o emagrecimento de Bale é visível (consta que perdeu 25 quilos durante as filmagens) – o que sugere que ele pode ocupar a vaga de Klaus Kinski em filmes de Herzog, que sempre exigiu sacrifícios da equipe em suas filmagens tão obcecadas quanto os empreendimentos de seus personagens. Mas o ator - que teve uma participação brilhante no pirotécnico O Grande Truque - não se destaca apenas por estas peripécias físicas, mostrando mais uma vez que tem talento para ir de Batman a Psicopata Americano.



Jeremy Davies (de O Resgate do Soldado Ryan, Dogville e Manderlay) também confirma sua habilidade para papéis difíceis como em Solaris - segunda versão. Seu personagem não é simpático e já está psicologicamente comprometido desde sua primeira aparição, mas o ator não escorrega em estereótipos fáceis – indo além da magreza cadavérica que exibe. Como curiosidade, ele também perdeu quilos (quinze), assim como Steve Zahn (dezoito). Quase poderiam se igualar ao verdadeiro Dieter Dangler que pesava apenas quarenta quilos ao final de sua prisão e da trajetória pela selva.



Há uma citação sobre Dangler que deu título ao documentário anterior sobre sua vida: nascido na Alemanha em 1938, ainda criança presenciou a derrocada do nazismo e a destruição de sua cidade quando do final da II Guerra: ao ver tão de perto um avião voando baixo e o piloto que bombardeava onde ele estava, teria decidido também ser piloto, o que veio a conseguir na Marinha Americana (daí a frase “o pequeno Dieter precisa voar”). A narrativa do episódio neste filme onde ele é revivido por Christian Bale não deixa de evocar as cenas em que o mesmo ator, aos 13 anos, via os kamikazes japoneses partirem para seus vôos suicidas no filme de Spielberg, O Império do Sol, também inspirado em uma vida real, a de James G. Ballard, futuro autor de Crash, livro que daria origem ao polêmico filme de Cronenberg.



O fotógrafo desta versão ficcional é o mesmo do documentário anterior sobre os mesmos fatos. E cabe ainda destacar a trilha musical (provavelmente escolhida por Herzog, já que traz números com a banda Popol Vuh que ele utilizou várias vezes no passado, como no seu Nosferatu): há, por exemplo, trechos algo dissonantes para acompanhar a trajetória na mata, com resultados muito superiores ao que parece ter sido a música composta especialmente para o filme e que não escapa a clichês grandiloqüentes para os créditos finais.



# O SOBREVIVENTE (RESCUE DAWN)

EUA, 2006

Direção e Roteiro: WERNER HERZOG

Fotografia: PETER ZEILINGER

Montagem: JOE BINI

Direção de Arte ARIN ‘AOI’ PINIJYARARAK

Música: KLAUS BADELT

Elenco: CHRISTIAN BALE, STEVE ZAHN, JEREMY DAVIES

Duração: 126 minutos

Site oficial: http://rescuedawn.mgm.com



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