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NOVO MUNDO

22.12.2007
Por Dinara Guimarães
A BELEZA NO OLHAR PERDIDO

Este artigo aponta na direção do que o cinema ensina à psicanálise, e não da psicanálise aplicada ao cinema, ou da psicanálise selvagem assimilada ao cinema. Isso porque o cinema mostra o que não é mostrável, vale dizer, ele mostra um impossível do Real, que, nos termos lacanianos, é o vácuo, o vazio da Coisa. Trata-se de um cinema cuja estética alcança uma homologia entre a seqüência dos planos e a retórica do inconsciente.



Desde este ponto de vista, Novo Mundo, do italiano Emanuele Crialese - e apresentada pelo renomado diretor ítalo-americaano Francis Ford Coppola - é uma obra de arte. Mas o que é uma obra de arte? Ela tem como preliminar necessária superar uma versão artística e estetizante, ao apropriar-se de uma técnica e não reduzir a arte à técnica, mas transcender ou transmudar. E é assim que o filme é narrado: a saga da família de Salvatore Mancuso (Vincenzo Amato), o viúvo e analfabeto que, querendo deixar a pobreza para trás, vai à procura do irmão nos Estados Unidos, acompanhando de sua mãe (Aurora Quattrocchi) e seus dois filhos (Francesco Casisa e Felippo Pucillo), em rumo ao Novo Mundo, a América do início do século dezenove.



À medida que as figuras do passado sucedem-se historicamente, a narrativa revela-se simétrica do recalque freudiano, quer dizer, o recalque originário na origem da cultura e o recalcamento secundário que a cultura engendra. Nota-se a influência dos irmãos italianos, Paolo e Vittorio Taviani, cineastas visionários e que têm como marca registrada o saudosismo e a requintada narrativa, ao estilo de parábolas. O resultado é um belíssimo filme, constituído de imagens simbólicas plano após plano, seqüência após seqüência, que nos tocam como a perpétua exclamação face ao poema voltado para o feminino.



A narrativa lendária da migração em massa dos italianos nos Estados Unidos, não se restringe a um registro político ou social, da história das massas humanas. Expressa como a travessia pela viagem modifica as pessoas que são movidas pela utopia do Novo Mundo e o imagina como fantasia. Daí o ponto de partida e o ponto de chegada do diretor não ter sido os livros da história, mas as cartas dos imigrantes escreviam durante esse período e os semblantes das fotografias dos recém chegados quando colocados em filas para os exames de admissão, em que se utiliza o jogo de construir uma casinha, aplicado na fase infantil da criança. Ou de botar um livro no chão para testar se ela obedece às ordens de superiores. Ele expressa o olhar perdido, que parecia estar pedindo uma explicação enquanto se esforçavam, desorientados, para encaixar as formas geométricas em um retângulo de madeira, na frente de homens uniformizados que mantinham os olhos fixos nos relógios para registrar quanto tempo eles demoravam, para achar a solução. Ou ainda, o que são aquelas pessoas que preservam o mistério absoluto, irredutível ao nível imediato da significação naturalista. Por isso, a enunciação subjetiva prevalece sobre os enunciados visíveis.



O filme compreende três partes para marcar o tempo do passado, do presente e do futuro. A primeira, mostra a vida no lugar de origem, a pequena cidade na Sicília, Itália, da qual o diretor retira imagens do tempo da solidão que não se pode consolar com as experiências imaginárias pelo eu, existentes no homem do campo, na ótica de um princípio, do surgimento de um objeto criado desde que se diga "se faz luz". Esta solidão prossegue na segunda parte durante a viagem como a metamorfose em que o imaginário, progressivamente, dilui-se, até chegar à Ellis Island, que nunca é vista, mas é disso que se sonha. Torna-se assim um ponto de origem de outra representação possível, a separação da mãe. Na terceira parte, ao final da viagem, a mãe sofre em perder sua posição de matriarca e de curandeira no Velho Mundo, enquanto a solitária inglesa Lucy Reed (Charlotte Gainsbourg) no Novo Mundo, tencionando garantir um casamento na imigração norte-americana, ilude seu filho Salvatore, enfeitiçado pelo objeto de desejo.



É nos contornos do vazio que se recicla a relação de afastamento e proximidade da realidade, em todos os âmbitos da vida, do amor e da cobiça, misturada às belas imagens. As imagens do vazio pelos contornos do navio que se afasta, quando o silêncio do oceano entre as pessoas que embarcam e as que ficam no cais do porto, transmite a angústia na separação; a separação inevitável, acompanhada com a dor em ambos os lados, de quem fica e de quem vai. As imagens de beleza e de prazer em cotejar uma mulher, apesar do desconforto da terceira classe do navio aglomerado de migrantes, e o desencantamento na escolha dos americanos pelas lindas moças camponesas que deixaram suas famílias em troca de um marido americano, a condição para imigrar. As imagens congeladas das duas mulheres, a velha mãe e a nova mulher, que parecem resumir a passagem do filho entre uma e outra.



Através da viagem, há uma travessia da fantasia pelo fato dos camponeses terem passado por isso. Ela lhes permite, ao passarem para a outra margem do oceano, alcançarem a verdade trágica sobre a ausência de fundamento na existência da Nova América. Não antes de terem encontrado o Real. O Real que Jacques Lacan define como sendo aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar. Consegue transmitir, em uma seqüência magistral, a angústia da mãe quanto ao que não consegue falar. É seu neto surdo-mudo que surpreendentemente verbaliza, em nome dela, o seu desejo de voltar à Sicília, independentemente de ser repatriada por ter uma mente fraca. No entanto, ela é a única lúcida, ao ver que se o jovem não se separar dela não há a possibilidade de ir em frente, no futuro. Fica então com o que há no Velho Mundo para fazer sua elaboração do luto da perda, enquanto os jovens, vestidos com as roupas dos heróis mortos, nadam no mar de leite materno, para fazer com que seu passado não seja esquecido.



DINARA GUIMARÃES é psicanalista, autora de autora de "Voz na Luz: Psicanállise e Cinema" e "Vazio Iluminado: o olhar dos olhares" (ed. Garamond)



NOVO MUNDO (NUOVO MONDO)

Itália, França, 2006

Direção e roteiro: EMANUELE CRIALESE

Fotografia: AGNÈS GODARD

Montagem: MARYLINE MONTHIEUX

Música: ANTONIO CASTRIGANO

Desenho de produção: CARLOS CONTI

Elenco: VINCENZO AMATO, CHARLOTTE GAINSBOURG, AURORA QUATTROCCHI, FRANCESCO CASISA, FILIPPO PUCILLO

Duração: 120 minutos

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