A Romênia pode orgulhar-se de seu cinema atual, mas, paradoxalmente, poucos países podem orgulhar-se tão pouco da imagem com que vêm sendo mostrados no cinema. E não se trata apenas da contingência histórica do comunismo terminal, como evocado na comédia A Leste de Bucareste ou evidenciado com tintas cruas neste 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. O filme que iniciou essa onda do cinema romeno, A Morte do Sr. Lazarescu, denunciava a desumanidade do sistema de saúde não à época de Ceausescu, mas na Bucareste de 2005.
Se o socorro médico ao humilde Sr. Lazarescu era um labirinto kafkiano recente, as condições de um aborto ilegal numa cidade média romena em 1987 eram uma descida ao inferno. A abúlica e desmiolada Gabita (Laura Vasiliu) só conta com a ajuda de Otilia (Anamaria Marinca), sua companheira de quarto numa república de moças, para interromper uma gravidez inoportuna. Na maior parte do tempo, Gabita permanece encerrada num quarto de hotel enquanto Otilia percorre uma rota de sobrevivência que passa pelo mercado negro de bens de consumo, a corrupção de funcionários, empréstimos e relações degradantes com os detentores de qualquer tipo de “moeda”.
A imensa solidariedade da amiga é um gesto que parece ter desaparecido da paisagem humana da cidade (a não ser pela atitude de um passageiro de ônibus que salva Otilia de um apuro). A “era dourada” de que ironicamente fala o diretor Christian Mungiu nos créditos finais eram na verdade os anos de chumbo de um regime moribundo, paralisado pela burocracia e por rituais vazios que somente se repetiam. O rótulo do socialismo apenas mascarava um escalonamento de classes que se percebe na relação entre Otilia e seu namorado de uma família de intelectuais e profissionais “superiores”.
Como o também extraordinário A Vida dos Outros, o filme de Mungiu investe na construção detalhada de personagens e de uma atmosfera extremamente sugestiva dos últimos tempos do leste sovietizado. O espectador pode quase tocar com as mãos os interiores desolados, as ruas úmidas e a expressao tensa das duas moças em sua aventura clandestina. Pois é de clandestinidade que se trata, no fim das contas. Por vezes, o drama seco e naturalista abre espaço para insights de suspense quase hitchcockiano envolvendo ora um canivete, ora a expectativa de uma tragédia, ora a necessidade de ocultar uma carga mórbida. Otilia é a real protagonista – e uma informação que intuímos perto do final criará toda uma nova perspectiva para suas ações em benefício da colega de quarto.
O filme empenha completamente sua linguagem na fixação desse ambiente e das sensações de Otilia. A primeira cena se abre sobre a imagem de um aquário com dois peixinhos em pequeno volume de água. É a metáfora perfeita para o confinamento que afeta a todos, na ausência quase total de privacidade. Os espaços são exíguos e pouco aconchegantes. O sufocamento pelo coletivo se expressa à perfeição na cena do jantar com a família do namorado, quando a própria lente da câmera sugere não ter espaço suficiente para enquadrar todos os convivas. A alienação para com os dramas individuais também fica patente nessa seqüência antológica.
Christian Mungiu lidera uma equipe e um elenco afinadíssimos com sua proposta radicalmente verista, a partir de uma câmera fixa que “espera” em vez de provocar a ação. Os diálogos são de uma crueza e uma precisão acachapantes. A exposição dos procedimentos sociais também desce a minúcias que transportam o espectador a cada local e cada circunstância. Mas é justamente ao pormenorizar tanto que o filme se oferece a interpretações ambíguas.
Seria 4 Meses... um filme anti-aborto? Algumas falas, uma tomada especialmente expositiva e a cena final no restaurante do hotel podem surtir um efeito de rejeição à idéia da gravidez interrompida. São momentos que parecem ir além do comentário social e mesmo além da questão das condições rudimentares daquele tipo de intervenção, transbordando para um possível “ alerta de consciência”. Essa angulação desmereceria bastante um filme admirável sob (quase?) todos os aspectos, mas é preciso considerá-la no seu diálogo com faixas diferentes de público.
4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS (4 LUNI, 3 SAPTAMANI SI 2 ZILE)
Romênia, 2007
Direção e roteiro: CHRISTIAN MUNGIU
Fotografia: OLEG MUTU
Edição: DANA BUNESCU
Desenho de produção: MIHAELA POENARU
Elenco: ANAMARIA MARINCA, LAURA VASILIU, VLAD IVANOV, ALEXANDRU POTOCEAN
Duração: 113 minutos
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