Críticas


SENHORES DO CRIME

De: DAVID CRONENBERG
Com: VIGGO MORTENSEN, NAOMI WATTS, ARMIN MUELLER-STAHL, VINCENT KASSEL
05.03.2008
Por Daniel Schenker
TRADIÇÃO À BASE DE CONTRASTES

Em determinado momento de Senhores Do Crime , Ekrem (Josef Altin), responsável por um assassinato logo na primeira seqüência do filme, tem a cabeça degolada enquanto atravessa um cemitério durante uma passeata. Na passagem seguinte, o espectador se depara com a comemoração festiva do centenário de uma cliente no restaurante de Semyon (Armin Mueller-Stahl, ótimo). A proximidade das duas cenas não está escorada num simples efeito, mas talvez no desejo de David Cronenberg destacar a brutalidade e o afeto como eventuais ingredientes da tradição.



“A família é importante para a sua gente”, dispara a enfermeira Anna (Naomi Watts, em papel que não oferece grandes vôos interpretativos) diante de Nikolai (Viggo Mortensen, superestimado com a indicação ao Oscar) e Krill (Vincent Cassel), ambos ligados à máfia russa Vory V Zakone, marcada por rígidos códigos de conduta. À frente da organização criminosa está Semyon, pai de Krill, que concilia a extrema crueldade de seus atos com o que de pessoal pode existir na perpetuação de tradições – a começar pela própria irmandade mafiosa.



Tudo em seu luxuoso restaurante evidencia cuidado e aconchego: a decoração, com destacadas tonalidades de vermelho e verde, o requinte do cardápio, o preparo especial do borscht, a conhecida sopa de beterraba russa. “Vou preparar sopa de beterraba para você, como seu pai fazia”, diz Semyon a uma ainda inocente Anna, engajada na missão de investigar os acontecimentos sinistros por trás da morte de uma imigrante adolescente, Tatiana (Sarah-Jeanne Labrosse), que deu a luz a uma menina durante o seu plantão.



O elo de fidelidade entre os integrantes da Vory V Zakone e os vínculos que eventualmente surgem dentro da organização, como entre Nikolai e Krill, se sobrepõem às relações de sangue, absolutamente corrompidas. A máfia passa a ocupar o lugar da família, a exemplo do ritual de iniciação de Nikolai nesta história justamente ambientada nas proximidades do Natal.



Cronenberg parece ressaltar que a família de sangue esbarra em inviabilidades. Anna se sente especialmente desestabilizada diante da recém-nascida porque sofreu a experiência traumática da perda de uma criança. De volta à casa da mãe, Helen (Sinéad Cusack, bastante expressiva), vive em conflito com o padrasto moralista, Stepan (Jerzy Skolimowski). Com a menina, batizada de Christine, Anna começa a ensaiar os primeiros passos para a formação de uma família distante dos moldes convencionais – mas que adquire, em dado instante, uma feição algo padronizada com a esperada aproximação de Nikolai.



Seja como for, não é o sangue que vale em Senhores Do Crime e, não por acaso, litros e litros jorram na tela ao longo da projeção: cabeças degoladas, gargantas cortadas com navalha afiada, olhos perfurados, uma jovem em situação terminal desmaiada numa poça de sangue, corpos retalhados após a morte. David Cronenberg, porém, não filma movido pelo sadismo – pelo menos, não primordialmente – ao investir em cenas explícitas.



Em primeiro lugar, vale lembrar da importância que deformações e incisões físicas costumam adquirir em seu cinema, como no excelente Crash , só para citar um de seus trabalhos. Além disso, o diretor aborda aqui um mundo em que tudo se explica através do corpo, sejam as escrituras contidas nas diversas tatuagens, sejam as marcas da violência (não por acaso, título de outro filme de sua autoria) estampadas a cada novo conflito. E não é preciso que as histórias de vida estejam literalmente escritas nos próprios corpos. Afinal, o corpo é lembrado como instância reveladora do indivíduo, como na seqüência em que Nikolai luta nu numa sauna.



À escrita do corpo se sobrepõe ainda a escrita do diário, narrado por Tatiana e traduzido por Stepan. Em Senhores do Crime , os fatos vão sendo descortinados diante do espectador a partir da narração em off do diário, que, na voz chorosa da atriz (outra atriz, Tatiana Maslany) e com o acompanhamento constante da trilha sonora, ganha um tom adocicado que aproxima a trágica via-crucis da personagem de um registro algo melodramático.



# SENHORES DO CRIME (EASTERN PROMISES)

EUA/Canadá, 2007

Direção: DAVID CRONENBERG

Roteiro: STEVEN KNIGHT

Produção: ROBERT LANTOS, PAUL WEBSTER

Trilha Sonora: HOWARD SHORE

Fotografia: PETER SUSCHITZKY

Elenco: VIGGO MORTENSEN, NAOMI WATTS, ARMIN MUELLER-STAHL, VINCENT KASSEL

Duração: 100 minutos

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