O flerte de Woody Allen com as tragédias gregas é mais duradouro do que qualquer relação conjugal que ele já teve. Em Poderosa Afrodite havia uma tragédia grega dentro do filme, e a profetisa Cassandra aparecia dizendo: “Eu vejo desastres. Eu vejo catástrofes. Pior: eu vejo advogados!”
Em O Sonho de Cassandra há dois irmãos e uma tragédia caminhando inexoravelmente para seu desfecho ao som adequado de Philip Glass. No entanto, Cassandra é mais um McGuffin (um despiste) que uma pista a seguir. Se algum texto clássico corre em paralelo ao filme é o Fausto, com sua história do pacto com o mal do espírito em troca do sucesso material.
O que surpreende mais uma vez – e vem se configurando como o grande traço desse Allen londrino que já nos deu o fraquinho Scoop e o ótimo Match Point – é sua capacidade de explorar o lado negro da ambição e dos compromissos familiares sem perder de todo seu sotaque de comédia.
A escritura de Allen tem aqui alguns trunfos. Um deles é a construção das diferenças (de postura, ética e objetivos) entre os irmãos Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell), mas preservando uma identidade de fundo e uma ligação que nos faz vê-los de fato como irmãos. Outro é o desenvolvimento da trama, que leva natural e imperceptivelmente a pelo menos três grandes viradas, capazes de relançar o interesse do espectador como se um novo filme começasse dentro de um filme único.
Não é senão pela maturidade que se chega a essa estética simples, com uma fotografia até mesmo feia de Vilmos Zsigmond, mas em que toda ênfase é colocada nos diálogos e nas excelentes atuações do elenco. As hilárias expressões de angústia e culpa de Colin Farrell merecem entrar para uma antologia da interpretação segundo Woody Allen. E a sensualidade de Hayley Atwell faz qualquer homem compreender por que Angela Stark incendeia as ambições de Ian.
Mais que qualquer tragédia ateniense, O Sonho de Cassandra traz à mente o savoir-vivre meio marginal de Aquele que Sabe Viver (Il Sorpaso), o clássico de Dino Risi. Isso quando a ação se concentra em Ian. E quando a câmera se detém sobre o resto da família, um clima de Mike Leigh invade as cenas, com um realismo que por pouco não se sente no tato, ainda por cima sonorizado com o sotaque inconfundível dos subúrbios de Londres.
Talvez Woody Allen esteja mesmo prezando a eficiência dramatúrgica em detrimento de qualquer brilhareco de superfície. Mas como é bom ver um autor levar adiante suas obsessões com tamanho afinco e sem jamais desprezar a perspectiva do espectador. Cassandra pode dormir tranqüila quanto ao cinema de Woody: não há catástrofes à vista.
O SONHO DE CASSANDRA (CASSANDRA’S DREAM)
Direção e roteiro: WOODY ALLEN
Fotografia: VILMOS ZSIGMOND
Edição: ALISA LEPSELTER
Música: PHILIP GLASS
Elenco: EWAN MCGREGOR, COLIN FARRELL, HAYLEY ATWELL, JOHN BENFIELD, CLARE HIGGINS, ASHLEY MADEKWE
Duração: 108 minutos
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