Um dos aspectos menos estudados nos filmes de Abbas Kiarostami é o valor dramatúrgico do automóvel. Enquanto os americanos, historicamente, entronizaram o carro como um signo de afirmação (de poder, status, velocidade, sexualidade) ou de crise (fuga, perseguição, transgressão, suicídio), Kiarostami pode estar consagrando o veículo como o local por excelência do encontro e da reflexão.
O público carioca teve menos sorte que o paulista em conhecer Ten, o novo filme do diretor iraniano. Ele estava programado no Festival do Rio, mas teve suas exibições canceladas na última hora, por força de atraso no cronograma do distribuidor brasileiro. Está em cartaz na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Nele, Kiarostami leva ao limite uma opção que vinha se aprofundando progressivamente em sua obra, desde as longas seqüências automobilísticas de E a Vida Continua e O Gosto da Cereja.
À exceção de um único plano (uma prostituta se afasta na noite e entra no carro de um novo cliente), todos os 92 minutos de Ten se passam no interior de um carro em movimento. Um carro que, nunca visto por completo, não assume existência física de objeto ou máquina, permanecendo como um mero dispositivo dramático. O título se refere às 10 caronas oferecidas pela motorista sem nome (chamemo-la de Mania, o prenome da atriz Mania Akbari). Pouco a pouco, através dessas conversas a bordo, vai se definindo a personagem de Mania, uma jovem senhora da classe média alta de Teerã, bonita, independente e livre-pensadora, divorciada e profissional da área artística.
Das 10 caronas, numeradas como numa contagem regressiva, quatro são para o filho de Mania, uma garoto de cerca de 10 anos que a acusa duramente de não ser boa mãe e de ter mentido em juízo para obter a separação do ex-marido. Uma irmã e uma amiga de Mania também ocupam o lugar do carona para lamentar dissabores amorosos. Uma prostituta entra no carro por engano e tem um delicioso diálogo sobre as semelhanças “comerciais” entre esposas e putas (“Vocês são atacadistas, enquanto nós trabalhamos no varejo”, argumenta). Uma velha beata é conduzida à entrada de um santuário e, na hora de saltar, propõe uma troca de papéis – ela ficaria no carro e Mania, mais necessitada de uma pausa espiritual, desceria no seu lugar.
Com uma admirável medida de humor, indagação filosófica e observação social, Kiarostami traça um painel da situação da mulher no Irã atual. Não é um painel socialmente horizontal como em O Círculo, de Jafar Panahi. O foco está cravado numa parcela privilegiada da classe média, cujos signos entreouvimos nos diálogos ou entrevemos na paisagem que passa pela janela do carro. As duas ou três coisas que Kiarostami sabe sobre Teerã sugerem semelhanças com a Zona Sul do Rio ou os bons bairros de São Paulo. Uma cidade dominada por telefones celulares, cursos de informática, TVs por assinatura, carros modernos, prédios residenciais protegidos por grades nas calçadas, obras por todo canto. E homens desastrados no trânsito.
Mania é a nova mulher que se insinua nessa paisagem defendendo a auto-estima feminina, conquistando espaços, enfrentando cobranças e se preparando para uma realidade onde é necessário saber ganhar e perder. Não se trata de uma heroína feminista nem mesmo de uma anunciadora, mas de alguém que simplesmente recusa o refúgio nas lágrimas ou na conformidade às expectativas masculinas. Não cede à eventual sensação de culpa por não preencher os requisitos de mãe e esposa exemplar à moda iraniana. “Nós, mulheres, precisamos nos amar”, diz à amiga abalada pelo fim de um noivado.
Toda essa viagem existencial é filmada com uma câmera digital e procedimentos rigorosamente minimalistas, que um crítico inglês bem denominou “mosca no parabrisa”: planos fixos de um ou de outro interlocutor, enquanto parte do quadro é preenchido pelas informações que desfilam através da janela do carro. Há nisso um sistema de ocultação que ora privilegia o falar, ora o ouvir. Vez por outra, temos a simples espera de um personagem enquanto o outro sai do carro momentaneamente. Ficamos ali, diante da mulher ou do garoto que apenas espera, entregue aos gestos e cacoetes de quem está sozinho. Uma poderosa impressão de “vida como ela é” atravessa o filme inteiro, como se a direção se ausentasse a partir de um curioso misto de espontaneidade e planejamento prévio.
Para isso contribui também a forma como os atores incorporam os pequenos acidentes e incidentes da rua: um buraco na rota dos pneus, os curiosos que passam num carro ao lado ou outro que atravanca o trânsito. A base documental que tanto fascina e intriga nos filmes de ficção iranianos opera aqui com absoluta sutileza, integrando representação e vivência para além de qualquer possível discernimento.
O carro assume um valor próximo ao que tinha no cinema primitivo, quando trens, automóveis, rodas gigantes etc eram engajados na tarefa de dar movimento às câmeras fixas e pesadas. A diferença fundamental é que o movimento não é tratado como fetiche. Não tem valor de movimento em si, nem de entretenimento ou mobilidade narrativa. Em Ten, não importa a origem nem o destino das caronas de Mania, embora isso possa ser citado nos diálogos. O movimento é somente um embalo para o pensamento. E a metáfora eloqüente de uma sociedade em transição.