O cineasta italiano Mario Monicelli completou em maio último 87 anos em plena atividade. O cultuado diretor do clássico Os Companheiros nasceu em 1915, provavelmente em Viareggio. Ainda hoje persistem dúvidas se ele apenas se fixou com sua família, ainda muito pequeno, naquele tranqüilo balneário da Toscana, ou se realmente nasceu lá. Dúvidas que o próprio Monicelli não faz questão nenhuma de esclarecer. A exemplo de outros seus contemporâneos ainda em atividade, como o português Manoel de Oliveira, 94, e o também italiano Michelangelo Antonioni, 90, Monicelli parece longe da aposentadoria: recentemente participou no Oriente Médio da série Um Novo Mundo é Possível, composta de episódios ambientados em territórios ocupados por Israel. Realizou também um documentário sobre seu amigo já falecido, o genial compositor Nino Rota, lançado no ano passado, e no momento já está começando um novo projeto.
Hoje consagrado, Monicelli vem recebendo uma série de homenagens na Itália: a última delas aconteceu no mês passado, no 19o European Film Festival em Viareggio, onde foi Presidente do Júri e participou da Mostra Lições de Cinema, que exibiu alguns clássicos de sua vasta carreira. O evento é dirigido por Felice Laudadio, atualmente também coordenador da Mostra de Cinema de Taormina. Durante o festival tive oportunidade – juntamente com alguns poucos jornalistas – de conversar com Monicelli, logo após a exibição do seu filme Tomara que Seja Mulher (Speriamo che Sia Femmina), de 1986, com Catherine Deneuve e Liv Ullmann. E também depois que, pacientemente, ele conseguiu se desvencilhar das dezenas de jovens estudantes que o cercavam com muitas perguntas. Uma delas o diretor não respondeu, mas achou muita graça: um estudante quis saber por que ele havia usado, em um de seus filmes, o pseudônimo de Michele Badieck. Ao que se sabe isso aconteceu quando, com esse pseudônimo, Monicelli dirigiu o filme Pioggia D’Estate, em 1937. O episódio somente acrescentou um pouco mais de névoa na mitologia existente sobre o diretor.
Já sentado numa cadeira de frente para o límpido mar Tirreno, simpático, sorridente e muito brincalhão, começou dizendo que “estava sem pressa” . Lembrou que passava um pouco das duas da tarde e seu próximo compromisso seria somente às nove da noite, quando receberia outra homenagem, o Troféu Federico Fellini 8 ½ Platinum Award . “Assim, podemos conversar com calma”, garantiu. “O ritmo de vida hoje é muito veloz e acho que isso afeta também o cinema. Por exemplo, temos que tomar cuidado quando escrevemos os nossos roteiros. Nesse mundo imprevisível em que vivemos, uma trama escrita hoje pode estar totalmente superada amanhã”, afirmou o diretor, concluindo que é preciso, no entanto, viver a época atual. “Não façam como eu, que não tenho fax nem e-mail”, aconselhou, rindo de si mesmo.
As perguntas sobre seus filmes giraram, como quase sempre acontece, em torno de Os Companheiros e O Incrível Exército de Brancaleone. Este último teve uma exibição especial numa praça pública, a Piazza Grande totalmente lotada, no último festival de Locarno. Monicelli achou a sessão emocionante: “esse filme é um dos meus favoritos e me proporcionou algumas lições. Uma delas decorre de uma divergência que tive com Mario Cecchi Gori, um dos produtores do filme. Ele insistia no nome de Gian Maria Volonté para interpretar o personagem do nobre bizantino e eu queria muito que o ator fosse Dario Fo. Discutimos bastante mas eu não consegui convencer Gori e Volonté ganhou o papel. Logo percebi como eu estava errado e hoje não consigo imaginar outro ator vivendo Teofilatto dei Leonzi. O desempenho de Volonté é insuperável”, reconheceu.
A uma pergunta sobre os métodos adotados para as filmagens de Os Companheiros, Monicelli fez uma brincadeira, antes de responder: “vocês assistiram ao filme que acabou de ser mostrado (Tomara que Seja Mulher)? Gostariam de saber alguma coisa sobre ele?”, disse, exibindo uma cópia em vídeo do filme que tinha nas mãos e acrescentando que estava apenas fazendo uma provocação: “já estou acostumado , em todas as entrevistas Os Companheiros e Brancaleone são sempre o centro das atenções. Na verdade, eu normalmente não costumo seguir um esquema rígido para realização dos meus filmes. Foi assim nas filmagens de Os Companheiros e se repetiu nos demais. Em quase todos, o roteiro era alterado segundo a inspiração do momento, de acordo com a complexidade das interpretação dos atores, improvisações surgidas ou outras variáveis que faziam com que o traçado inicial pudesse ser mudado”, contou. Como era filmar naquele tempo comparado com hoje, perguntamos. “Aquele era um mundo, este de agora é outro totalmente diferente. Naquele tempo ainda podíamos nos permitir algumas fantasias. Hoje a realidade nos lembra a cada momento as turbulências do mundo atual. E isso evidentemente afeta os filmes italianos e não apenas eles. Afeta o cinema como um todo, os seres humanos e toda a sociedade. Mas o cinema continua sendo um poderoso instrumento de denúncia social e política, devemos sempre aproveitar isso”, afirmou.
Monicelli passa credibilidade na sua afirmação, mas confessa que é sempre difícil quando precisa satirizar a sua amada Itália. Contou que recentemente gravou um programa para a série Blu e ficou muito à vontade, pois lhe foi pedido que escolhesse e falasse sobre quatro grandes exemplos da criatividade italiana. “Entre eles, não pude deixar de incluir a muzzarela, certamente uma das maiores criações dos meus patrícios “, disse, lembrando que a invenção da muzzarela acabou afetando costumes, turismo, tradições e influindo no dia a dia da vida dos italianos.
Falando sobre o projeto em que está trabalhando, Monicelli explicou que é uma história sobre imigrantes que deram uma grande contribuição para a composição da atual estrutura social da Itália. “Eles tiveram uma grande influência na formação cultural do nosso país e isso não é reconhecido. As pessoas não sabem direito quem foram eles, onde viveram, de onde vieram, o que fizeram. Quero resgatar esse passado e dar a eles o crédito que por direito merecem”, disse o diretor, acrescentando que já está trabalhando no roteiro com sua amiga Suso Cecchi d’Amico. A roteirista, que já trabalhou com Monicelli em outros projetos como Os Eternos Desconhecidos, é também escritora de alguns dos maiores clássicos de Luchino Visconti, como O Leopardo e Rocco e Seus Irmãos.
Ao final, visivelmente indeciso, um jornalista perguntou como Monicelli se sentia aos 87 anos. Mas o veterano diretor não se deu por achado : “felizmente estou bem de saúde e posso trabalhar. A grande vantagem da velhice é a imunidade que vem com ela. Hoje não preciso mais ficar tão preocupado com as coisas que digo, não meço tanto as palavras , tenho mais liberdade para errar; as pessoas são muito compreensivas com os velhos, talvez até um pouco demais”, concluiu. A simpática assessora que acompanhava Monicelli, estava aflita para levá-lo para comer alguma coisa, mas ele continuava sem pressa. Fez questão de apertar a mão de todos os jornalistas, convidou-os para a homenagem que receberia à noite e aconselhou a que todos vissem seu filme. “Além de Os Companheiros e Brancaleone, fiz alguns outros”, brincou mais uma vez.