Texto escrito quando da exibição do filme no Festival do Rio 2008
Ficção e documentário parecem dois pólos distintos dentro do cinema, mas, na verdade, são complementares. Hoje em dia, há um grande número de documentaristas que procuram inspiração na ficção e vice-versa. E existem também aqueles que intercalam projetos, caso do brasileiro Tony Venturi (Cabra-Cega), que dirige uma ficção seguida de um doc. A instância criadora é proveniente de inúmeras referências que formam o realizador, que se pega muitas vezes absorto por um tema e necessita de registros distintos para conseguir se expressar artisticamente de maneira plena. Esse é o caso do chinês Jia Zhang-Ke - considerado uma das principais figuras da sexta geração de diretores chineses e um dos nomes mais importantes do cinema contemporâneo -, que rodou o documentário Dong no mesmo local em que dirigiu o drama Em Busca da Vida (Leão de Ouro de Veneza 2006). Agora, ele alterna os projetos e consegue manter unidade nas realizações. E Inútil é uma prova cabal disso.
A princípio, a simples leitura do argumento deste documentário gera um estranhamento: por que Zhang-ke se interessaria pela indústria da moda? Mas essa impressão logo se desfaz, pois os temas que norteiam a sua obra logo vêm à tona na narrativa: o choque entre moderno e arcaico (Em Busca da Vida) e a reflexão sobre a cultura de costumes chineses frente à globalização (O Mundo). E Jia é, sem dúvida, o melhor cronista dessas vicissitudes dentro do cinema de seu país.
Sem uma distinção formal ou letreiros explicativos, Inútil se inicia com o registro em uma fábrica de roupas. Os planos intercalam proximidade e distância, com vagarosos travelings, que são uma de suas marcas registradas. A câmera só observa os gestos e não há nenhuma entrevista: apenas o registro simples e puro. Uma das melhores seqüências surge nesse trecho quando a equipe filma atendimentos do médico da fábrica em um despojamento iluminado que só o documentário parece capaz de produzir.
Após o estado de observação, Jia filma o depoimento de uma estilista, sem interceder com perguntas ou o plano usual do entrevistado em frente à câmera. É ela que vai iniciar o discurso de reflexão apreciado por Zhang-ke quando fala sobre a diferença de uma roupa feita à mão e outra industrializada: “não há emoção e sentimento em algo criado pela máquina”, decreta a jovem. Ela participa de uma semana de moda em Paris, onde é consagrada. O problema que se instaura em Inútil é que Jia só esboça o seu discurso, como no plano em que filma bolsas e objetos de mulheres preocupadas com a aparência ou com o nome de marcas famosas nas lojas de rua. Não há uma dialética, apenas uma montagem intelectual breve de tomadas da população em contraponto à frieza e distância de tais espaços.
O momento de transição do documentário é feito em uma viagem de carro com a estilista, que fala sobre a terra natal e memória. Inútil começa, então, a se aproximar cada vez mais de Em Busca da Vida, onde ficção e documentário se confundem. Após apresentar uma fábrica de roupas e o universo da alta costura, o diretor foca o olhar para o outro lado ao filmar uma simples costureira em um pobre vilarejo. O registro permanece o mesmo, com a distância do personagem filmado. Entretanto, o diretor, de maneira brusca, entrevista uma cliente da moça e a segue até em casa para conversar com seu marido, um antigo alfaiate que trabalha agora nas minas de carvão. É como se Zhang-ke precisasse interferir para conseguir um elemento que ainda faltava na obra. Ainda assim, a mudança no conceito não torna Inútil uma experiência desinteressante.
INÚTIL(Wuyong)
China/Hong Kong, 2007
Direção:JIA ZHANG-KE
Fotografia:JIA ZHANG-KE e YU LIK-WAI
Duração:80 minutos.