“Não sei porque vim com você”, afirma Franz, um rapaz de 20 anos, diante de Leopold, um homem bem mais velho do que ele. De início, o espectador também pode ter dificuldade em identificar os motivos, mas aos poucos a equação construída por Rainer Werner Fassbinder em sua peça - Gotas D’Água em Pedras Escaldantes foi escrita para o teatro e chega às telas em transposição assinada pelo cineasta François Ozon – vai se tornando mais evidente. Uma equação que inclui intimidação sexual, cumplicidade masculina e postura paternal.
A câmera de Ozon é uma auxiliar perfeita na estratégia de sedução do Ato I (houve a preocupação em manter uma estrutura cênica, seja na divisão em atos, seja na concentração da ação num único ambiente). Vai rodando, rodando, até parar na pergunta-chave: “você já dormiu com um homem?”, indaga Leopold, mais direto. Franz começa, então, a entrar em terreno realmente íntimo. Relata um sonho erótico – de costas para a câmera, como convém a uma confidência – com um suposto marido da mãe. “No sonho eu era uma menininha e ele me comia”, confessa, assumindo o desejo de encontro com uma figura paterna (é importante ressaltar que este tipo de embasamento afasta Fassbinder/Ozon de um retrato eventualmente preconceituoso no que se refere ao relacionamento entre pessoas de idades diversas). Leopold, é claro, aproveita o gancho: “não desejaria fazer isto com um homem?”
Há um corte instantes depois (e os cortes são sempre anunciados pelo princípio de uma relação sexual) e na volta o público já encontra Franz imerso num sonho – ou, mais adequado seria dizer, num pesadelo, na medida em que se tornou mais uma entre as marionetes manipuladas por Leopold. É aí que Gotas D’Água em Pedras Escaldantes se aproxima de um distúrbio caro a Ozon, bastante evidenciado em Sob a Areia : os personagens que se defendem fugindo da verdade.
Nesse sentido, Franz não é uma simples vítima barbarizada por Leopold. O texto original explicita e o filme trata de sublinhar os ganhos secundários decorrentes da passividade, o prazer do jogo (sexual). A partir de um determinado momento (a chegada da ex-namorada de Franz, Anna, ou talvez ainda mais cedo), Franz começa a enxergar o esquema ilusório pelo qual se deixou levar. De repente, se depara com sua imagem no espelho, inicialmente dividida entre a consciência e a escravidão – mas unida pela certeza de que sozinho não conseguirá escapar da dependência.
François Ozon investe em diversas possibilidades de subtexto, fazendo de Gotas D’Água em Pedras Escaldantes um trabalho instigante. Se o diretor não chega a assinar uma obra complexa, esta limitação talvez se deva ao desenho rígido dos personagens, algo que também acomete os dois homens de Fale com ela , de Pedro Almodóvar. Há uma vulnerabilidade exposta de antemão em figuras que acabam se revelando, paradoxalmente, pouco ambíguas ou, pelo menos, pouco misteriosas. Mas deve-se dizer que Gotas D’Água... não parece enquadrado numa vertente realista-psicológica. Sem chegar ao ponto de se divertir procurando instantes de verdade no terreno da artificialidade como em Oito Mulheres , Ozon quebra a coerência tradicional e se mantém próximo da lógica particular dos desejos.
# GOTAS D’ÁGUA EM PEDRAS ESCALDANTES (GOUTTES D’EAU SUR PIERRES BRULANTES)
França/Japão, 1999
Direção e Roteiro: FRANÇOIS OZON
Produção: OLIVIER DELBOSC, CHRSITINE GOZLAN, KENZÔ HORIKOSHI, MARC MISSONNIER E ALAIN SARDE
Fotografia: JEANNE LAPOIRIE
Montagem: LAURENCE BAWEDIN E CLAUDINE BOUCHÉ
Elenco: BERNARD GIRAUDEAU, MALIK, ZIDI, ANNA THOMPSON E LUDIVINE SAGNIER
Duração: 90 min.