Peço licença aos amigos de (sacri)ofício Gallego e Janot para meter a mão
na cumbuca do Woody Allen. Discordo e concordo com ambos. No que diz
respeito ao Gallego, concordo com Janot. Não vejo realmente influências
de Truffautt em Vicky Cristina Barcelona. A narrativa em off é mesmo
excessiva. Allen podia ter usado menos o recurso.
Por outro lado, discordo de Janot, e aí concordo com Gallego, que o filme não está lá tão longe de Woody Allen. Como autor, Allen é um "Zelig" que somatiza
influências dos seus mais diversos ídolos. Ingmar Bergman talvez seja o
mais presente. Há desde as referências óbvias, como Interiores (revejam!
revejam!), Setembro e A Outra, até as mais inusitadas, como a procissão à
la Sétimo Selo de Bananas e o final com pitadas de Persona de A Última
Noite de Boris Grushenko. Meus preferidos são Crimes e Pecados
(obra-prima! Obra-prima!! Obra-prima!!!), com toda uma sequência tirada de
Morangos Silvestres, e Maridos e Esposas. Allen também já andou emulando
John Cassavetes no próprio Maridos e Esposas e em Um Misterioso
Assassinato em Manhattan. E usa e abusa do histrionismo de Bob Hope desde
Um Assaltante Bem Trapalhão até O Mistério do Escorpião de Jade.
Nada disso aparece em Vicky Cristina Barcelona, o que não quer dizer que
Allen deixou de ser Allen. Desde Match Point o diretor retomou outra de
suas grandes influências que meus dois comparsas esqueceram de citar: a
literatura russa do século XIX. O protagonista de Match Point é um
Rashkolnikov pós-moderno, cínico e sem culpa. Os irmãos Karamazov de O
Sonho de Cassandra vivem à sombra dos fantasmas éticos e morais. E
finalmente Vicky Cristina Barcelona é um retorno à sofisiticação narrativa
de um dos maiores ídolos de Allen: Tolstoi.
Sem o brilho de Hannah e Suas Irmãs, Vicky Cristina Barcelona é um exercício de estilo narrativo cuja fonte é "Anna Karenina", obra fetiche de Allen.
Ainda que imperfeito, com dois grandes personagens, Vicky e Cristina, e outros nem tanto, Juan Antonio e Maria Elena, o filme aguarda surpresas como a revelação da
infidelidade da amiga de Vicky e reflexões íntimas, como a epifania de
Cristina, que só os melhores narradores reservam.
Allen, portanto, continua Allen, como quer Gallego; porém não truffauttiano, como destaca Janot. Mãos fora da cumbuca.