Ultimamente, o tema do desemprego tem aparecido mais e mais nas telas e começa a fazer parte constante da pauta dos cineastas em todo o mundo. Afinal, muitos diretores são intelectuais que utilizam o cinema para fazer com que as pessoas reflitam sobre questões fundamentais que, de uma forma ou de outra, nos afetam. Um exemplo clássico surgiu ainda no longínquo 1927, quando Chaplin estreou o seu genial Tempos Modernos, satirizando os males da industrialização como um fim em si só, além da alienação do trabalho e seus efeitos no ser humano.
Em 1999, os irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne realizaram Rosetta, uma denúncia poderosa sobre como a perda do emprego afeta as pessoas, suas famílias e a sociedade como um todo. O sisudo júri de Cannes não resistiu e deu o prêmio de melhor filme para Rosetta, que levou também o Prêmio Especial do Júri Ecumênico pelo caráter humanista da obra. O inglês Ken Loach vem igualmente expressando as mesmas idéias num filme atrás do outro, como Meu Nome é Joe e The Navigators, um drama sobre ferroviários na Inglaterra ameaçados de desemprego.
O francês Laurent Cantet é outro diretor que vem se especializando no tema. Para uma platéia lotada no último Festival de Sundance, Cantet mostrou seu trabalho mais recente, A Agenda (L’Emploi du Temps) . O filme, que havia sido premiado em Veneza/01 na Mostra Cinema do Presente , agora chega às telas brasileiras. Já no seu primeiro longa, Recursos Humanos (Ressources Humaines) – um estudo sobre a política de RH na França – Cantet demonstrava seu talento ao observar como as normas rígidas, desumanas e procedimentos inadequados podem afetar e até anular para sempre as pessoas no cotidiano do seu trabalho. No filme, um estagiário contratado para trabalhar numa empresa acaba sendo um dos responsáveis pela demissão de seu próprio pai, antigo funcionário da fábrica.
Este seu novo filme, inspirado em fatos reais, é uma história impressionante sobre o desespero de um homem comum, essencialmente bom e sensato, que passa a ser dominado por atos absurdos e a enganar a si próprio quando perde o seu emprego. Aurélien Recoing, num ótimo desempenho, é Vincent, que se sente como se acabasse de perder seu ancoradouro. Demitido de uma empresa depois de 11 anos de trabalho, incapaz de confessar a verdade para sua família, ele passa os dias ao volante do seu carro dirigindo pela região, falando nervosamente ao celular e percorrendo furtivamente edifícios de escritórios. Na medida em que ele anda pelas salas onde pessoas estão ocupadas trabalhando, os espectadores vêm um homem que procura não um novo trabalho, qualquer trabalho que seja, mas sim um lugar no mundo. Para isso, ele não hesita em enganar a família e os amigos e até a passar por cima de seus valores éticos na sua luta para sobreviver.
De início, essa pantomima sobre o trabalho parece triste e patética ; lentamente, porém, ela se torna um drama terrível . A busca de “um lugar no mundo”, por sinal, era também um dos brados da heroína do filme de Luc e Jean-Pierre Dardenne quando dizia: “eu preciso de um emprego para me sentir uma pessoa normal e voltar a fazer parte deste mundo”.
Cantet, um homem tranqüilo de 41 anos, conversou conosco em Park City, quando falou sobre A Agenda, sobre as motivações para suas abordagens no cinema e seus projetos futuros.
Críticos.com.br - Qual a razão de tantos temas ligados ao mundo do trabalho nos seus filmes?
Laurent Cantet - Acho que posso ser mais uma voz para mostrar como determinadas práticas nas relações do trabalho e no mundo das organizações – muitas levando a um clima insustentável e ao desemprego – podem afetar pessoas, suas famílias, suas vidas e influir na sociedade como um todo.
Críticos.com.br- Dentro desse contexto, qual seria seu principal interesse nesse mundo em transformação das relações de trabalho?
Laurent Cantet - Eu também sou um trabalhador, exerço este ofício através do cinema. Aquilo que mais me interessa e o que mais busco pesquisar é o que o trabalho significa para cada um de nós e como ele pode influir para construir nossa personalidade. Por essa razão procuro também trabalhar com amadores , a fim de que eles passem sua vivência para os personagens. Neste meu filme, por exemplo, apenas o casal central foi interpretado por atores profissionais.
Críticos.com.br - Foi difícil compor o personagem principal, o Vincent? Você se inspirou num personagem real, em exemplos que acontecem na França?
Laurent Cantet - Sim, foi baseado em fatos reais, em histórias colhidas em páginas de jornal e em depoimentos de pessoas. Mas na verdade, o Vincent não é apenas francês. Ele pode estar na França, aqui nos Estados Unidos ou no seu país, o Brasil. No mundo globalizado de hoje, o problema que acontece nas relações no trabalho é universal. Em todos os lugares onde foi mostrado, o filme tem sido muito bem recebido. Sei que isso acontece porque muitas pessoas se vêem ou se identificam com o personagem.
Críticos.com.br - Você pode falar um pouco mais sobre isso ?
Laurent Cantet - Existe toda uma ética relacionada com o mundo do trabalho e também com o desemprego. Vincent é um homem dividido entre essa ética que o faz sentir “culpado” por estar desempregado , a opressão e a marginalização que pode vir a sofrer por parte da sociedade e que caminhos vai buscar para conviver com o fato e tentar resolver esses conflitos. Só quem está desempregado, ou já passou por isso, sabe o real significado dessa situação.
Críticos.com.br - Você se considera um cineasta do chamado cinema político, a exemplo de outros como Costa Gavras ou Ken Loach?
Laurent Cantet - Sim, mas o meu principal objetivo é mostrar que o trabalho pode ser uma coisa maravilhosa uma auto realização, mas pode ser também uma forma de escravidão, de perda da dignidade e até uma forma de anulação do ser humano. Eu luto para que a primeira premissa prevaleça.
Críticos.com.br - Mas o seu filme coloca o personagem obrigando-se a trair a si mesmo, a se vender. Você não vê solução para a questão?
Laurent Cantet - Não se trata de ver uma solução ou não. Eu quis apenas mostrar como um indivíduo pode muitas vezes ficar impotente e isolado diante da máquina que rege o trabalho, das pressões , e até da necessidade de renunciar aos seus sonhos. Eu quis fazer uma denúncia através deste personagem, mas em momento nenhum pretendi julgá-lo.
Críticos.com.br - Qual o seu próximo projeto?
Laurent Cantet - Tenho algumas coisas em mente, mas nada fechado ainda. Na França ainda há muitas indefinições quanto ao mecanismo de financiamentos, o que pode dificultar um pouco planos pré estabelecidos. Mas certamente vai ser um filme sobre pessoas, seus sentimentos, aspirações e sonhos. Meu tema principal de reflexão é o ser humano.
Leia a crítica deA Agenda por Carlos Alberto Mattos