Especiais


CINEMA BRASILEIRO PRÉ-COLLOR

15.02.2009
Por Daniel Schenker
TRANSIÇÃO OU RUPTURA?

Integrantes de uma geração promissora, alguns diretores começaram, a partir da segunda metade dos anos 80, a mostrar filmes centrados no retrato de uma juventude luminosa e em instigantes exercícios de gêneros. Mas a continuidade dos seus projetos foi inviabilizada pelo governo Collor, responsável pela extinção da Embrafilme e pela quase total paralisação da produção cinematográfica no Brasil.



Guilherme de Almeida Prado, André Klotzel e Murilo Salles conseguiram, mesmo que de modo espaçado, fazer com que seus trabalhos desembarcassem no circuito; Roberto Gervitz levou mais tempo para viabilizar o filme seguinte; Dodô Brandão ainda não retornou ao formato do longa-metragem; Sergio Toledo desistiu do cinema; e Chico Botelho e Wilson Barros morreram após a realização de filmes emblemáticos.



A produção renasceu. O período, chamado de fase da retomada, teve como marco Carlota Joaquina , de Carla Camurati. Mas de que maneira a produção realizada dos anos 90 em diante passou a se relacionar com os filmes da segunda metade da década de 80? Autor da dissertação de mestrado Esse Milhão é Meu: Estado e Cinema no Brasil (1984-1989) , Telmo Estevinho detecta mais distância que proximidade entre o cinema brasileiro dos anos 90 e o período imediatamente anterior. “O cinema brasileiro da década de 90 foi marcado pelo resgate de um elo com o Cinema Novo. Daí a quantidade de filmes ambientados em favelas e que trouxeram à tona o estilo de vida das classes operárias. Procuraram retomar o cinema dos anos 60 sem passar pelo dos 80”, observa Estevinho.



Em sua pesquisa, adotou como objetos filmes que justamente caminhavam na contramão da herança do Cinema Novo. “Escolhi trabalhos de jovens cineastas paulistas, ambientados em espaços urbanos, que destacavam a subjetividade dos personagens, ao lidarem com o universo da sexualidade e seus tabus, e voltados para gêneros específicos”, enumera, referindo-se a Vera , Anjos da Noite , A Dama do Cine Shangai e Feliz Ano Velho . “Eram filmes que destoavam da proposta da Embrafilme, que tendia a valorizar produções que abordavam inquietações políticas”.



Guilherme de Almeida Prado confirma o descompasso entre a Embrafilme e A Dama do Cine Shangai . “Só consegui porque tive a sorte de contar com a aprovação de um conselheiro. Do contrário, dificilmente teria viabilizado um filme voltado para a interação com o cinema noir, como A dama ...”, relembra. Prado continuou filmando depois do impacto causado pelo governo Collor graças ao fato de ter formulado Perfume de Gardênia como projeto da Casa de Imagem, empresa concebida como alternativa para a prática de um cinema de baixo orçamento após o término da Boca do Lixo. “ Perfume... acabou não sendo feito pela Casa de Imagem. Mesmo assim, foi realizado em esquema de guerrilha, na base da amizade”, conta.



Aos poucos, o cineasta concretizou projetos antigos – os de A Hora Mágica , formulado como segunda parte de A Dama do Cine Shangai , e Onde andará Dulce Veiga? , cuja primeira versão do roteiro escreveu com Caio Fernando Abreu. Agora, Prado não tem data para voltar ao cinema. “Com o fiasco de Dulce Veiga , resolvi dar um tempo. Sinto vontade de investir em filmes com alguma ousadia, mas se tornou impossível. O modo de fazer cinema mudou. Hoje, para conseguir verba, é preciso convencer pessoas que não têm qualquer relação com cinema”, diagnostica Prado, que está desenvolvendo o projeto de uma série de TV.



Responsável pela versão cinematográfica do livro de Marcelo Rubens Paiva, Feliz Ano Velho , Roberto Gervitz chama atenção para as dificuldades enfrentadas por quem começava a filmar nos anos 80. “Faço parte de um grupo que demorou muito para viabilizar o segundo longa”, assinala Gervitz, que só lançou Jogo Subterrâneo em 2005. “Eu desejava fazer esse filme desde o final da década de 80. O que acabei filmando não teve nada a ver com o roteiro original”, destaca o diretor, que no entreato causado pelo governo Collor, migrou para a publicidade, terreno em que se dedicou à campanha institucional Gente que Faz .



Feliz Ano Velho foi um projeto bastante pessoal na trajetória de Gervitz. “Queria valorizar mais o impasse existencial de um jovem do que a questão política”, resume. O jovem não era “só” Marcelo Rubens Paiva, que ficou paralítico ao bater a cabeça numa pedra quando mergulhou num rio, mas também Roberto Gervitz, a julgar pelo texto escrito pelo diretor como prefácio para o roteiro publicado do filme: “Fiquei emocionado com o depoimento do Marcelo, com seu discurso adolescente, mas que apontava para uma transição. Era como uma despedida de um momento do qual não adiantava mais sentir saudades; não voltaria mais. Fiquei impactado, sobretudo, pela imagem de imobilidade física de um jovem da minha idade. Era como se ela simbolizasse e sintetizasse os conflitos que eu vinha atravessando”, escreveu Gervitz.



O comprometimento com propostas autorais uniam os filmes realizados ao longo dos anos 80, ainda que não houvesse uma unidade entre eles. A Marvada Carne , de André Klotzel, não se filiou ao ambiente urbano que contextualizou boa parte das produções do período. “Mas isto não o desvinculou daquele momento”, observa Klotzel. “Até porque existia, em São Paulo, um grupo de cineastas formado pela ECA, a Escola de Cinema da USP. Desta geração, fizeram parte, além de mim, Sergio Toledo, Guilherme de Almeida Prado, José Antonio Garcia e Ícaro Martins, profissionais saídos ou, pelo menos, próximos da ECA”.



Depois de A Marvada Carne , Klotzel continuou filmando, mas enfrentou os empecilhos do período. Para fazer Capitalismo Selvagem , contava com financiamento da França, da Alemanha e da Embrafilme. “Com o fim da Embrafilme, fiquei com o dinheiro dos dois países, mas sem poder filmar”, explica Klotzel, que levou oito anos entre A Marvada Carne e Capitalismo... O vínculo com o cinema brasileiro, que fez com que persistisse diante de todos os obstáculos, foi estimulado nas aulas com Paulo Emilio Salles Gomes. E é olhando para trás que identifica uma diferença fundamental entre os diretores que iniciaram carreira nos anos 80 e os que deram os primeiros passos na retomada pós-Collor. “Para nós, fazer cinema era mais aventureiro e romântico. Muitos dos que começaram a dirigir depois não tinham o mesmo compromisso com o cinema brasileiro”, diz Klotzel, que planeja lançar, este ano, Reflexões de um Liquidificador , seu novo filme, protagonizado por Ana Lucia Torre.



Murilo Salles concorda com a comparação. “Atualmente, existe uma preocupação menor com o cinema propriamente dito. Os diretores tendem a apostar em filmes mais acadêmicos. Não seria justo, porém, negar a presença de uma garotada inteligente”, declara. As barreiras enfrentadas para filmar nos anos 80 eram, segundo Salles, de ordem diversa. “Tínhamos que aprovar os projetos na Embrafilme, o único órgão financiador, e comprovar experiência na área. Não é como hoje em dia, em que Guilherme Fontes capta R$ 12 milhões sem nunca ter dirigido um curta”, assinala Murilo Salles, referindo-se ao interminável Chatô .



O cineasta sofreu com a derrocada do cinema nacional no período. Faca de Dois Gumes pegou Collor na cabeça. Lembro que o filme estava sendo exibido em São Paulo e teve que ser retirado de cartaz, apesar da boa resposta do público”, evoca, acerca de sua transposição para a tela do original de Fernando Sabino. Murilo Salles já tinha assinado um filme que, de certa forma, liderou uma vertente de cinema intimista que passaria a imperar nos anos 80. Era Nunca Fomos tão Felizes , adaptação do conto Alguma Coisa Urgentemente , de João Gilberto Noll. “O meu filme marcou um afastamento do Cinema Novo ao apostar no discurso da pessoalidade. Na verdade, fazia parte de uma tendência iniciada por diretores como Walter Hugo Khoury, Julio Bressane e Rogerio Sganzerla. Mas Bressane e Sganzerla traziam discursos marcados pela ironia e pela metáfora, identificados com os anos 70, ao passo que Khoury buscava conexão com o cinema de Antonioni, diferentemente de mim”, analisa Salles, envolvido agora com o thriller psicológico O Fim e os Meios .



Murilo Salles escreveu o roteiro de Nunca fomos... em parceria com Jorge Durán, diretor de A Cor do seu Destino . Há elementos de proximidade entre os dois filmes, que confrontam jovens com os contextos adversos do regime militar. “Em A cor... estava interessado em abordar a memória como um motor que nos leva a agir”, resume Durán, que também trabalhou com Roberto Gervitz no roteiro de Jogo Subterrâneo . O diretor levaria 20 anos para filmar outro longa, Proibido Proibir , no qual confirmou sua habilidade para abordar a juventude. Nesse intervalo trabalhou na TV chilena. Felizmente, não levará mais tanto tempo para apresentar seu próximo filme, intitulado Não se pode Viver sem Amor , sobre um grupo de pessoas que se encontra no dia 23 de dezembro na expectativa de que algo aconteça em suas vidas.



Outros filmes, representativos do cinema praticado durante os anos 80, poderiam ser mencionados, como Cidade Oculta , de Chico Botelho, e Dedé Mamata , de Dodô Brandão. Mas o fundamental é sublinhar a qualidade da produção de uma época que acabou sendo abortada e perceber de que maneira os diretores que começaram a fazer cinema a partir dos anos 90 se relacionam com aquele momento. Até porque a eventual negação não deixa de ser uma forma de relação.



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