Existem cineastas como Milos Forman, que na maior parte das obras discutem hegemonicamente um tema – no seu caso a transgressão. E existem cineastas como Rob Epstein, que dedicam sua obra a uma causa – que não apenas expõem opiniões (o que já seria muito) mas que constroem, pedra sobre pedra, filme sobre filme, os argumentos e a mobilização em torno dessas causas.
A causa de Epstein é o direito das minorias homossexuais. Desde 1977, Epstein realizou 12 documentários sobre o tema (quatro deles apenas para a televisão). Dois de seus filmes ganharam o Oscar: Common Threads – Stories from the Quilt (1989), sobre pessoas que morreram de AIDS (a síndrome havia sido diagnosticada no inicio daquela década), e The Times of Harvey Milk, quatro anos antes.
Vi este dois filmes e mais alguns: The Celluloid Closet (sobre artistas gay de Hollywood, que ganhou o prêmio Teddy em Berlim em 1995), e Parágrafo 175 (sobre o código penal alemão de 1891 e a subsequente perseguição de homossexuais pelo nazismo, que ganhou inúmeros prêmios internacionais, inclusive o da FIPRESCI em Berlim 2000). Todos esses filmes não são apenas meritórios pelo que procuram defender. São obras fundamentadas, propositivas e extraordinariamente bem realizadas. Isto é mais que suficiente para reconhecer em Epstein um dos cineastas contemporâneos que melhor consegue utilizar o cinema como uma arma. Seus filmes atuam dentro da sociedade e buscam referencias intelectuais para tocar lutas que não se acabam e que tem que ser lutadas (ele neste momento trabalha num filme sobre os processos de obscenidade lançados contra Howl, o poema de Allen Grinsberg; o que pode haver de mais contemporâneo?).
Vi The Times of Harvey Milk pela primeira vez há exatos 23 anos e me lembro claramente de ter ficado impressionado por duas coisas: a riqueza do material (sobre Milk, sobre seus detratores e sobre as perseguições a gays em San Francisco e outras cidades) e a maneira pela qual o diretor as juntava, como se fossem peças de argumentação para serem utilizadas num julgamento. A força desse material deixou em minha mente muitos dos personagens, como Milk - é claro, George Moscone e a turma de Milk no Castro.
É surpreendente que tudo isso consiga estar com tanta precisão numa obra de ficção como Milk. Lembrar que Sean Penn consegue ficar parecido com seu personagem não quer dizer muita coisa – mas se o intérprete não conseguisse pensar e agir como Milk, seu personagem não seria mais que um gay excêntrico. O que há de particularmente notável nisso é que não se trata de lidar com emoções primarias de personagens bidimensionais – como acontece em Benjamin Button, por exemplo – mas com a força de uma causa que Milk defendia com a mesma tenacidade com que Epstein o faz.
À medida que o tempo passa percebemos que há menos tempo para passar. Somos mais seletivos nas informações que recebemos e nas que produzimos. Este me parece o caso de um cineasta como Gus Van Sant. Desde os anos 80 fez filmes muito bons, como Drugstore Cowboy, My own Private Idaho (título no Brasil: Garotos de Programa) e Elephant (Elefante), mas atingiu finalmente a depuração em Paranoid Park e Milk. Aqui, sua veia documental segue fielmente o que Epstein havia feito e a construção ficcional é feita em pinceladas rápidas, sutis e cerebrais. Seu trabalho com Penn é fora do comum, mas o que dizer do casting de James Franco para o papel de Scott Smith? A força da relação entre Scott e Harvey é confirmada por todos os textos que li, particularmente “Remembering Scott Smith”, de Allan Baird. Outro diretor escalaria Leonardo di Caprio. Gus van Sant escala Franco, porque sabe do que está falando.
Sant olha seus personagens com o mesmo filtro com que olha para os personagens de Paranoid Park, um olhar intenso, sereno, capaz de enxergar. É isso o que faz Milk. O filme olha para o personagem de que está falando, o que não é complicado, e o enxerga, o que é bem mais difícil. Ao percebê-lo percebe a luta das minorias que está por trás – e é isso o que interessa, é disso que é feito o cinema que conta. Só Epstein teria feito um documentário como The Times of Harvey Milk. Suspeito que poucos, além de Sant, teriam feito uma obra de ficção que ficasse à sua altura.
# MILK – A VOZ DA IGUALDADE (MILK)
EUA, 2008
Direção: GUS VAN SANT
Roteiro: DUSTIN LANCE BLACK
Fotografia: HARRIS SAVIDES
Edição: ELLIOT GRAHAM
Direção de Arte: CHARLEY BEAL
Música: DANNY ELFMAN
Elenco: SEAN PENN, EMILE HIRSCH, JAMES FRANCO, DIEGO LUNA, JOSH BROLIN, ALISON PILL.
Duração: 128 minutos
Site oficial: www.milkthemovie.com