Especiais


II FESTIVAL PAULÍNIA – SEGUNDA METADE

17.07.2009
Por Daniel Schenker
II FESTIVAL PAULÍNIA DE CINEMA – OS ÚLTIMOS DIAS

Os documentários Moscou , de Eduardo Coutinho, e Só Dez por Cento é Mentira , de Pedro Cezar, se impõem na programação.



Quarto dia



A noite começou com a exibição de Moscou , de Eduardo Coutinho, uma das atrações do último Festival É Tudo Verdade. O diretor retoma questões embutidas no bem-sucedido Jogo de Cena – em especial, a fronteira entre ator e personagem, no modo como o primeiro se apropria de um texto que não escreveu – ao registrar o processo dos atores do Galpão, que, sob a condução de Enrique Diaz, ensaiam As Três Irmãs , de Anton Tchekhov, uma dramaturgia estranha ao grupo, que vem transitando por repertório formado por William Shakespeare ( Romeu e Julieta ), Molière ( Um Molière Imaginário ) e Bertolt Brecht ( Um Homem é um Homem ). Moscou é uma experiência com prazo marcado para terminar: ao final de três semanas, o processo seria interrompido. Coutinho não sabia onde iria chegar com essa proposta. Mas tinha certeza de que ela seria inacabada. A proposital incompletude também transparece no desapego às convenções teatrais – os atores surgem vestindo roupas de ensaio ou breves sugestões de figurino. O filme representa uma tomada de posição do artista, que se propõe a caminhar por trilha ainda não desbravada. O espectador assiste a exercícios lançados por Enrique Diaz com o intuito de comprometer o ator com o texto que irá dizer e às cenas de As Três Irmãs . A passagem dos exercícios para a cena permanece oculta e cabe perguntar a que se deve essa lacuna: será que não interessou a Coutinho mostrar essa passagem? Será que ela foi suprimida na montagem em favor de uma duração enxuta (78 minutos)? Ou se trata de uma transição misteriosa, impossível de ser filmada?



A figura do ator continuou em foco em No meu Lugar , primeiro longa-metragem de Eduardo Valente, valorizado pelo excelente trabalho de todo o elenco (menção especial para Marcio Vito), filiado à construção de um refinado naturalismo. Os atores se apropriam do que dizem. As falas surgem revestidas de pessoalidade, como se não estivessem atuando. Valente revela inegável domínio cinematográfico, mas suas motivações permanecem algo nebulosas ao final da sessão. Fica a pergunta: qual é exatamente a questão que atravessa No meu Lugar ? A tragédia que reverbera nas vidas de pessoas distantes, de classes sociais diferentes, unindo-as numa espécie de fio invisível? A evocação de um passado mais luminoso que, obviamente, não pode ser reconstituído? Este último ponto, que vem à tona de forma mais evidente no núcleo de personagens abastados da trama (o mais bem resolvido em termos de dramaturgia), sugere uma aproximação, mesmo que longínqua, entre No meu Lugar e À Deriva , de Heitor Dhalia. Também justifica, em parte, as idas e vindas no tempo que compõem a malha estrutural do filme. Mas talvez tenha sido justamente o fascínio pela estrutura que impediu Eduardo Valente de revelar ao público um norte mais específico do que os pontos ainda genéricos identificados no decorrer de No meu Lugar .



Quinto dia



Documentário de Pedro Cezar, Só Dez por Cento é Mentira contou com o carisma de Manoel de Barros. Mas o diretor (do criativo Fabio Fabuloso ) não se apóia nessa vantagem. Busca correspondentes visuais para as palavras de Barros (estampadas na tela), artista vinculado ao artesanal, que escreve a lápis, "em caligrafia miúda", nos cadernos que fabrica. Determinadas opções (como a narração em primeira pessoa, a cargo do próprio cineasta) são, em alguma medida, questionáveis. A utilização da trilha sonora (de Marcos Kuzca), também. Eventuais restrições que não chegam, porém, a nublar o brilho do trabalho. O título do filme se refere a uma constatação de Manoel de Barros acerca de sua obra. "Noventa por cento é invenção; só dez por cento é mentira", afirma o escritor. E explica: "a invenção é um negócio profundo. Serve para aumentar o mundo". Aos 92 anos, diz que só teve infância e, portanto, escreve "apenas" sobre ela. Depois dos 70, entrou na terceira infância e intensificou as publicações. Hoje continua vendo o mundo com olhar encantado, ciente de que cada objeto não se limita ao significado literal.



Na sequência, o público assistiu a Olhos Azuis , de José Joffily, sobre o processo de redenção de Marshall (David Rasche), chefe do Departamento de Imigração de um aeroporto nos Estados Unidos, que, em seu último dia de trabalho, trata um grupo de imigrantes latino-americanos com especial dose de sadismo, principalmente o brasileiro Nonato (Irandhir Santos, de Baixio das Bestas , de Claudio Assis, e da minissérie Pedra do Reino , de Luiz Fernando Carvalho). Olhos Azuis é um filme coerente dentro da trajetória de Joffily, diretor que gosta de se exercitar no terreno do thriller, a julgar por trabalhos anteriores, como A Maldição de Sanpaku e Achados e Perdidos . De fato, o cineasta mantém razoável dose de tensão até o final da projeção. Entretanto, não há nada de propriamente novo aqui. Sob o ponto de vista temático, Marshall desponta como mais um homem em final de linha que não mede esforços para compensar, do modo como é possível, uma tragédia que causou, como mais um estrangeiro que entra em contato com uma realidade que desconhece ou despreza. As soluções estéticas também repousam sobre o desgastado contraste entre o azul frio dos espaços claustrofóbicos e impessoais e as cores vibrantes do Brasil nordestino.



Sexto dia



Dando continuidade à série de filmes voltada para o resgate da trajetória de bandas emblemáticas do rock brasileiro, Herbert de Perto recupera o percurso dos Paralamas do Sucesso e, particularmente, de Herbert Vianna – a infância em João Pessoa, nos anos 60, a adolescência em Brasília, berço de grupos de rock como o Legião Urbana, e a chegada ao Rio de Janeiro. O trágico acidente de ultraleve, em 2001, que vitimou sua mulher, Lucia Needham, e o deixou paraplégico desponta, claro, como um divisor de águas. Os diretores Roberto Berliner e Pedro Bronz fazem Herbert revisitar imagens do próprio passado e realçam sua capacidade de superação. Contextualizam a efervescência do rock nacional na década de 80 e a delicada transição para a de 90 num documentário que entrelaça com correção imagens de arquivo referentes à carreira do grupo, entrevistas com familiares e depoimentos de Herbert.



A mostra competitiva de Paulínia terminou com a exibição de Antes que o Mundo Acabe . A diretora registra o rito de passagem de Daniel numa cidade do interior, desestabilizado diante de mudanças na relação com o amigo e a namorada e com cartas enviadas pelo pai que não conhece. O filme de Ana Luiza Azevedo não traz propriamente novidades em relação ao cinema produzido em Porto Alegre, em especial o de Jorge Furtado. Mas, apesar de certa sensação de deja vu, Antes que o Mundo Acabe revela boa dose de sinceridade na exposição do instável universo adolescente, graças, em boa parte, ao frescor presente nos trabalhos dos atores. Eventuais excessos (na trilha sonora) são compensados por boas tiradas do roteiro, narrado a partir da perspectiva da irmã menor do protagonista, e por determinados achados, como o esforço de Daniel em fazer uma montagem do pai desconhecido através das fotos que recebe.





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