Com a atenção devida e esperada, o crítico Marcelo Janot alerta neste site (leia aqui) para o disparate entre as bilheterias de Cidade de Deus e Ônibus 174. Janot observa que num momento em que o país passa por uma expressiva mudança política, materializada pela recente vitória nas urnas de Lula, é surpreendente que o público ainda demonstre resistência a um documentário tão contundente, revelador e oportuno quanto Ônibus 174.
Talvez a resposta para essa rejeição esteja no próprio filme. A tese defendida pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares da “invisibilidade social” atinge o documentário. Já fui surpreendido por algumas personagens da vida cultural carioca que confessaram não ter ido ao cinema por pura resistência à imagem de um Rio de Janeiro deteriorado, entregue ao caos urbano e à mais cruel desordem social. Pessoas que preferem não enxergar.
O incômodo provocado por Ônibus 174 é real, palpável, está a alguns passos do aconchego das salas escuras do Estação Botafogo ou do Espaço Unibanco. Ao contrário de Cidade de Deus, que, fique bem claro, também considero um filme espetacular, Ônibus 174 não oferece recompensas ou subterfúgios. Não saímos do cinema impressionados com o nível técnico do cinema brasileiro atual, muito menos enobrecidos com as possibilidades do Oscar ou com as revelações dos atores do grupo “Nós do Cinema”.
Ônibus 174 se reapropria do real e o enquadra na ótica objetiva do cinema documental. Não há como fugir às contradições, aos conflitos éticos e à ambigüidade de sentimentos em relação a Sandro: marginal que se interpõe na rotina de um circular ou vítima da perversidade da violência social, econômica e cultural? O temor de concordar com a primeira opção é que leva muitos a fugir do cinema.
O documentário tem o poder de mostrar as fraquezas e falhas que a dinâmica do dia-a-dia transforma em indiferença. O desvio de olhar dos miseráveis malabaristas de sinais ganha, na tela, foco, direção, sentido. O mesmo ocorre com Sandro, que de mero assaltante, seqüestrador, ou sei lá que denominação lhe caiba, passa a ter história, passado e presente. Futuro, jamais.
A resistência a Ônibus 174 faz-nos pensar, para usar um termo em voga, na “cosmética da atitude”. Tudo bem que o documentário nunca foi nosso gênero cinematográfico mais popular, mas por que então há vinte anos atrás um filme como Jango, no rastro das diretas, atraía milhões de pessoas ao cinema e hoje o documentário de José Padilha mal consegue superar os dez mil pagantes?
Aleguemos que a tônica de esperança da obra de Silvio Tendler levasse os espectadores a buscar nas telas o reencontro com o Brasil possível, o Brasil heróico, profético. Tudo bem. Já Ônibus 174, por sua vez, leva-nos ao encontro do Brasil inviável. Mais. Para nós, cariocas, este filme mostra um Rio de Janeiro sem porvir, afundado numa combinação macabra de abandono, desleixo e desapego à vida. Este Brasil, e este Rio de Janeiro, precisa redescobrir o caminho para a constituição de uma sociedade mais justa. E isso só será possível com ações que despertem os cidadãos da passividade. Do contrário, será o triunfo, já anunciado, da desesperança e da prática do extermínio. Ônibus 174 cumpre a sua parte. Falta agora os espectadores cumprirem a sua.