Da Paraíba para o mundo, A Hora da Estrela foi o filme-revelação do cinema brasileiro na temporada de 1985. Revelou as qualidades da cineasta paulista Suzana Amaral, uma profissional segura e sensível em seu primeiro longa-metragem, e da atriz paraibana Marcélia Cartaxo, um fenômeno de espontaneidade e adequação interpretativa. Com esses e outros trunfos numa equipe majoritariamente feminina, o filme conquistou doze prêmios no Festival de Brasília e, já neste ano, proporcionou a Marcélia o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim. A Hora da Estrela revelou, ainda, que é possível transpor Clarice Lispector para outra linguagem – ousadia que só a bailarina Marilena Ansaldi, no antológico Sopro de Vida, cometera antes com êxito.
É bem verdade que a novela A Hora da Estrela foi um momento de exceção na obra de Clarice. Publicado em 1977, ano da morte da escritora, este seu último livro tenta lidar com fatos e gente de carne e osso, em vez dos estados de alma e poéticas divagações dos textos anteriores. A autora experimenta-se e questiona-se através de um narrador masculino imaginário, ao mesmo tempo que compõe o retrato da nordestina Macabéa, antipersonagem insignificante, “nascida de uma ideia vaga dos pais famintos”. Nenhum ideal, nenhuma grande fantasia na vida além do vago e absurdo desejo de ser estrela de cinema. Entre o apertado escritório onde trabalhava como datilógrafa e o quarto que dividia com três moças, ela simplesmente “representava com obediência o papel de ser”.
Suzana Amaral, consciente das limitações do seu meio, abdicou de pretensões intelectualizantes e optou por uma simplicidade que reflete competência e entrega total. Marcélia Cartaxo, 23 anos, descoberta por Suzana na peça Beiço de Estrada, do Projeto Mambembe, vive com impressionante autenticidade o opaco cotidiano de Macabéa na megalópole paulista. São fiapos de sonho, aspirações miúdas, farelos de ilusão que se costuram por mãos delicadas, com cuidados e detalhes que só a sensibilidade feminina pode oferecer.
Para Clarice e Suzana, penetrar na intimidade dos pequenos seres é a melhor maneira de apresentar a sociedade devoradora e impiedosa. A lei da selva transparece das relações de Macabéa com o namorado ambicioso, Olímpico (José Dumont, outro paraibano em ação), a colega fogosa (Tamara Taxman) e a melíflua cartomante (Fernanda Montenegro). Longe das oposições fáceis com que se construiu uma sociologia cinematográfica no Brasil – muito útil em seu tempo -, A Hora da Estrela mobiliza emoções diretas e despojadas. Assistir à trajetória de Macabéa é como presenciar o cair de uma tarde ou a breve existência de um inseto. Não há lugar para grandes atitudes. É o relato de uma impossibilidade.
A adaptação de Suzana Amaral e Alfredo Oroz, bem apoiada na fotografia de Edgar Moura e na cenografia de Clóvis Bueno, só tem um aspecto discutível: a novelização do desencontro Macabéa-Olímpico, acréscimo que se choca com a crueza absoluta dos demais acontecimentos. Tudo o mais é puro equilíbrio e senso de medida numa história que, sutil mas cruelmente, vai ressecando o caldo cultural dos deserdados. Câmara grudada no rosto dos atores, sem artifícios nem glamour, o filme suga a verdade das personagens mesmo nos instantes de apatia e silêncio. Poucas vezes no nosso cinema o intimismo foi tão eloquente e combinou tão bem o humor com o sentido de tragédia.
Uma vitória dessa franzina e brava Suzana, que só depois de criar nove filhos se dispôs a seguir sua vocação. Quando fez o primeiro curta-metragem, em 1973, ela já tinha 42 anos. Para a TV Cultura de São Paulo, realizaria mais de 50 documentários antes de estudar cinema nos Estados Unidos e partir para a primeira grande aventura. Agora, aos 55 anos, ela prepara mais uma comunhão com Clarice: quer filmar o romance Perto do Coração Selvagem.
Artigo publicado na revista IstoÉ em 23/4/1986