Nine é um musical baseado em Fellini 8 ½. Abraça, portanto, dois universos. O do cinema musical e, naturalmente, o de 8 ½. Para pensá-lo – ou, bem antes disso – para apreciá-lo, é bom que se reflita por um minuto sobre o que o gerou.
Se todo o cinema tivesse que ser resumido a um criador, não tenho dúvida que seria Federico Fellini. Se todos os filmes tivessem que ser concentrados em um só, eu votaria em 8 ½. Realizado em 1963, expressa as duvidas de um artista que não tem o que dizer, mas sintetiza as grandes questões – existenciais, éticas, afetivas – do ser humano. Como muitos outros filmes de Fellini, é uma obra em permanente renovação. Sua apreensão depende a cada instante do repertório do espectador. Vi 8½ seguramente mais de 40 vezes – e cada uma é literalmente a primeira - porque o filme teima em se debruçar sobre o repertório que incorporei.
O diálogo de 8 ½ com seu espectador não pode ser comparado, em riqueza, ao que esse espectador será capaz de ter, em vida, com qualquer pessoa. É uma conversa densa, persistente, definitiva. Quando Guido vai ao Cardeal para lhe dizer que não é feliz, é recebido com uma pergunta: - E quem lhe disse que você veio ao mundo para ser feliz? - Isso é o que justifica a arte, o que a diferencia do passatempo. Um criador como Fellini é capaz de estabelecer patamares enriquecedores de diálogo com sua platéia. Não imagino muitas outras maneiras de generosidade com o ser humano.
8 ½ em si não é um musical – mas, como lembrou Roger Ebert, todos os filmes de Fellini são musicais. Não apenas por causa das trilhas de Nino Rota – sem cuja música o cinema de Fellini perderia a tridimensionalidade, seria outro bem menos grandioso – mas porque Fellini dirigia seus atores sob música – música produzida justamente para isso, para que os atores fellinianos a sentissem, sem necessariamente acompanhar seus ritmos, seus compassos ou suas melodias. Muitos críticos enxergam no western o gênero cinematográfico por excelência. Divido isso com o musical, embora o gênero já estivesse nos palcos muito antes da invenção do cinema. Mas nas telas a magia dos musicais não se ampara apenas nas extraordinárias trilhas de Rodgers, Hammerstein, Porter, Herb Brown, mas também na relação de criadores como Berkeley, Donen, Kelly, Fosse, Minnelli com a parafernália cinematográfica.
Nine consegue o que parecia impossível: banalizar o musical e banalizar 8 ½. Seria razoável se o filme simplesmente não funcionasse, talvez não falasse com um público em especial. Mas não há qualquer indício de que tal filme tenha sido feito para atingir quem quer que seja. Trata-se de um mero insulto ao legado de Fellini e à capacidade de pensar do ser humano. Um desfile de personagens dignos de piedade, mais que desprezo. Perto de Nine, o Big Brother Brasil é a Ilíada
Como um simples musical, Nine é surpreendentemente medíocre, mesmo se comparado às bobagens de Rob Marshall em Chicago, com o qual Nine tem em comum o reducionismo formal. O filme caminha pela via mais simples: da constrangedora coreografia de festa infantil, à divisão compartimentada dos números musicais entre os astros escalados para participar de um embuste barato.
Pouca coisa, porém, se compara à vulgarização do roteiro. Em Nine, todos se comportam como vendedores de Times Square se dirigindo aos turistas. Somos chamados de “Mister” o filme inteiro, tratados como consumidores idiotas comprando miniaturas da Estátua da Liberdade.
Seria mais fácil esboçar um roteiro sobre, digamos, um amor furtivo na Piazza Navona. Usar 8 ½ como base, eleva o filme do ruim para o grotesco. Extrapola a estreiteza de visão de um diretor, chega ao limite do palatável.
Noites de Cabíria se transformou, pelas mãos de Bob Fosse, em Sweet Charity, um musical renovador que tem, entre seus muitos méritos, o de inaugurar um modelo de edição no gênero, interferente sobre a encenação, que é praticado até hoje. Sweet Charity, realizado seis anos depois de 8 ½, foi escrito por Ennio Flaiano que também escreveu, com Tullio Pinelli, Cabiria e 8 ½, entre muitos outros filmes comandados por Fellini.
Flaiano sabia o que estava fazendo, o que definitivamente não é o caso de Rob Marshall nem do time de autores (Michael Tolkin, Anthony Minghella, entre outros) que escreveram Nine. Escalar Daniel Day Lewis para o Guido que foi construído para Marcello Mastroianni beira a insanidade. Lewis se parece mais com uma Tartaruga Ninja do que com um intelectual atormentado pela perda da inspiração. Duvido que Marshall tenha se dado ao trabalho de ver 8 ½ uma única vez (e se viu é ainda pior porque não foi capaz de entender um simples gesto, um mero olhar de Mastroianni), assim como tenho certeza que Guy Ritchie jamais se deu ao trabalho de ler uma mera historia de Conan Doyle, ou não teria colocado Robert Downey Jr. no papel de Sherlock Holmes, talvez um dos mais assustadores miscasting da história recente do cinema ocidental.
Ver uma boa atriz como Marion Cotillard vagando como um fantasma pela alma de Giulietta Massina é uma experiência assombrosa, mas isso não para por aqui. Lembro, em Julieta dos Espíritos, os fantasmas de Massina insistindo em atormentá-la e acho que eles simplesmente ganharam massa.
Num musical espera-se música, mas após duas intermináveis horas de projeção, desafio qualquer espectador a cantarolar uma música sequer do filme, coisa que eu não me atreveria num comercial de 15 segundos de refrigerante. Já a coreografia, amparada pelas caras e bocas que Marshall convence suas vinte celebridades a fazer incessantemente, situa-se entre o medíocre e o ridículo. Vi Penélope Cruz, Nicole Kidman, Judi Dench e até Sophia Loren como se fossem participantes de A Fazenda. Senti calafrios de vergonha praticamente a cada número.
Se fosse eu o Cardeal, daria a cada espectador a penitência: ver Fellini e Kelly pelo menos uma vez. Nine continuaria ruim, mas teria servido para alguma coisa.
# NINE (NINE)
EUA, 2009
Direção: Rob Marshall
Roteiro: Michael Tolkin e Anthony Minghella, baseado no livro de Arthyr Kopit e em roteiro de 8 ½, de Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli e Brunello Rondi
Fotografia: Dion Beebe
Edição: Claire Simpson e Wyatt SmithDireção de Arte: Peter Findley, Phil Harvey e Simon Lamont
Música: Maury Yeston
Elenco: Daniel Day-Lewis , Penélope Cruz , Marion Cotillard , Nicole Kidman , Judi Dench
Duração: 112 minutos
Site oficial: http://nine-movie.com/