Filmes ligados a uma manifestação artística diversa da cinematográfica costumam sofrer com o preconceito prévio de serem supostamente destinados apenas a um público-alvo específico. De fato, um trabalho como, por exemplo, Tio Vanya em Nova York , tende a conquistar espectadores mais conectados com a atividade teatral. No entanto, é importantíssimo verificar como Louis Malle atesta a atualidade de Tchekhov através de recursos próprios do cinema. Tosca , dirigido por Benoît Jacquot e exibido dentro da seleção oficial do Festival de Veneza de 2002, pode não atingir o mesmo grau de excelência mas ultrapassa, em muito, o estágio do mero registro – no caso, da ópera de Giacomo Puccini.
Mesmo que não totalmente autoral, a câmera de Jacquot abre possibilidades de entrada para os espectadores ao “funcionar” em três planos diversos. Em primeiro lugar há a filmagem da ópera propriamente dita, reproduzida num palco enorme que permite a visualização das vastas locações da obra de Puccini (uma forma de assumir o caráter teatral sem abrir mão de um certo realismo). Os constantes closes nos rostos dos atores/cantores quebram com eventuais riscos de distanciamento entre obra e platéia, evocando, ainda que numa perspectiva longínqua, o feito de Carla Camuratti em La Serva Padrona .
Depois, Benoît Jacquot flagra imagens granuladas e extremamente coloridas, que, como assume o próprio cineasta, são “citações dos lugares reais da ‘Tosca’, filmados em Roma, num formato amador, com uma câmera que mexe muito”. De qualquer modo, este formato amador traz à tona uma certa imprecisão do olhar, própria de quem enxerga não imagens concretas e sim aquelas resultantes de um momento em que se está submetido a uma “influência sensorial”. Tosca busca proporcionar ao espectador a oportunidade de passar por uma determinada experiência abstrata – numa ponte possível com outro filme brasileiro, o sensível Tônica Dominante , de Lina Chamie, que tinha como objetivo provocar a sensação musical através do cinema. Na terceira esfera de criação, Jacquot mostra, em preto-e-branco, imagens da gravação em estúdio, sublinhando menos uma feitura distante do calor da cena e mais a colocação visceral do artista no seu trabalho, a necessidade de estar se comunicando daquela maneira específica com o mundo.
Este nível de adesão, em algum ponto, toca na ferocidade de Tosca , que, como qualquer obra dotada de influência trágica, conta com personagens que potencializam seus sentimentos na contramão de qualquer meio-tom. Personagens que revelam instintos primitivos sem que, para tanto, suspendam a consciência acerca do que se passa. Ela está lá e Benoît Jacquot aproveita para exprimir o movimento do pensamento em falas em off. Parece bastante evidente o processo minucioso com os integrantes do elenco, que sustentam suas vozes (principalmente Angela Gheorghiu) tanto nos instantes em que não cantam quanto naqueles que precedem uma determinada manifestação verbal.
# TOSCA
Inglaterra/Itália/França/Alemanha, 2001
Direção: Benoît Jacquot
Roteiro: Giuseppe Giacosa e Luigi Illica (libretto) e Victorien Sardou
Produção: Daniel Toscan du Plantier
Fotografia: Romain Winding
Montagem: Luc Barnier
Cenários: Joël Lavrut
Figurinos: Christian Gasc
Elenco: Angela Gheorghiu, Roberto Alagna, Ruggero Raimondi e David Cangelosi.
Duração: 117 minutos