Especiais


ANTROPÓLOGOS NÃO SÃO SANTOS

06.04.2010
Por Carlos Alberto Mattos
ANTROPÓLOGOS NÃO SÃO SANTOS

Os filmes de José Padilha são corajosos. Isso implica estarem sempre no lusco-fusco entre a complexidade e o sensacionalismo. Em Garapa, prevaleceu o sensacionalismo. Em Tropa de Elite, as duas coisas se equilibraram e geraram polêmica. Seu novo documentário, Segredos da Tribo, junta-se a Ônibus 174 como vitória da complexidade sobre o efeito. O filme é uma das maiores atrações do É Tudo Verdade, que começa sexta-feira.



Secrets of the Tribe é uma co-produção da brasileira Zazen (de Padilha e Marcos Prado) com a HBO e a BBC. Estreou no Sundance com resenhas quase perplexas diante dessa visão demolidora do universo da Antropologia. Para quem vê de fora, os antropólogos formam uma comunidade razoavelmente coesa, sóbria e colaborativa. Motivados pelas melhores intenções, os antropólogos modernos também se autoexaminam, procurando assumir e refletir sobre as interferências de seu trabalho sobre os grupos humanos que estudam. Em contraponto à ideia do “bom selvagem”, eles seriam os “bons cultos”, devotados ao conhecimento e à defesa dos povos primitivos.



Mas o que Padilha vai revelar é bem diverso desse quadro, digamos, onírico. São histórias de pedofilia, indução ao homossexualismo, exploração de prostituição, experiências danosas à saúde dos índios. Não se poupa nem mesmo a palavra genocídio. A tribo do título, claro, é a comunidade dos etnógrafos.



O filme começa com cenas fortes de índios rejeitando a presença de antropólogos em suas tribos. Volta e meia, índios da região do Orinoco (sul da Venezuela e norte do Brasil) aparecem citando exemplos que confirmam a veracidade das denúncias apresentadas. Mas quem faz as denúncias são primordialmente outros antropólogos. Na verdade, estamos no meio do fogo cruzado de uma guerra que usualmente só explode nos limites das páginas das revistas científicas ou num livro como Darkness in Eldorado, do jornalista investigativo Patrick Tierney (2000), publicado no Brasil pela Ediouro como Trevas no Eldorado –como cientistas e jornalistas devastaram a Amazônia e violentaram a cultura ianomâmi. O doc de Padilha rastreia as fagulhas desse livro.



No centro das denúncias estão diversos antropólogos de renome internacional. Napoleon Chagnon, um pioneiro no estudo dos ianomâmi e personagem central do filme, defende-se das acusações de ter construído uma teoria manipulatória sobre o pendor daqueles índios para a violência. Kenneth Good justifica seu casamento com uma adolescente ianomâmi, que ele levou para uma experiência de vida americana padrão. Jacques Lizot, que se recusou a falar para o filme, é acusado – em detalhes explícitos – de abusar de meninos indígenas e instituir prostíbulos na tribo. O geneticista James Neel, já falecido, teria conduzido experiência de vacinação que exacerbou uma epidemia de sarampo entre os ianomâmi, com a cumplicidade do onipresente Chagnon.



Sobram farpas até para o venerando Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que teria acobertado os desvios éticos do discípulo Lizot. Lévi-Strauss é visto relevando a interferência dos antropólogos por ser mais “desculpável” que a dos colonizadores.



Nada soa simples ou unilateral na trama de depoimentos recolhidos por Padilha e montados com a sempre inteligente parceria de Felipe Lacerda. Fica claro, por exemplo, que o combustível das acusações recíprocas vem em grande parte de rivalidades notórias no meio. Napoleon Chagnon e Kenneth Good, por exemplo, não escondem que são adversários figadais. Divergências de interpretação, disputas de primazia e ataques pessoais se misturam numa guerra que, em vez de bordunas, é feita com textos e falas. “Os antropólogos são etnocêntricos e racistas”, atira o antropólogo Good.



Os ianomâmi, por sua vez, fazem declarações desconcertantes sobre a normalidade do uso do sexo como moeda de troca nas relações com os cientistas. Eles frequentam ainda as cenas de antigos filmes etnográficos que alimentam a inquietação de tudo o que é dito.



Não sei bem o impacto que Segredos da Tribo está produzindo no meio etnográfico. Esses casos extremos, se não abalam o prestígio da disciplina, pelo menos apontam fissuras éticas que se multiplicam em graus diferenciados. Mesmo sendo a discussão levantada por Patrick Tierney já conhecida há pelo menos 10 anos, a força dos depoimentos diretos dos protagonistas é digna de consideração.



O dossiê de Padilha termina com uma espécie de tributo/desagravo a Chagnon na American Anthropological Association e imagens de uma alegre feira de livros de Antropologia. O sentido do filme fica, então, mais claro. Não se trata de encampar esta ou aquela acusação, mas de mostrar que a Antropologia, tomada muitas vezes como algo próximo de uma religião, é na verdade uma ciência suscetível à política, às vaidades e às paixões.





SEGREDOS DA TRIBO (SECRETS OF THE TRIBE)

Brasil, Inglaterra, 2010

Direção e roteiro: JOSÉ PADILHA

Fotografia:LULA CARVALHO, REINALDO ZANGRANDI

Edição: FELIPE LACERDA

Música: JOÃO NABUCO

Duração: 94 minutos

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário