É difícil resistir à tentação de fazer um relato de minhas impressões sobre Cuba, em vez de escrever apenas sobre o Festival. Já tinha visitado Havana dez anos atrás, mas ainda assim a experiência de explorar a sociedade e a cultura locais é única, capaz de despertar o lado sociólogo de qualquer crítico. O Festival começou no dia 3, mas como a Cubana de Aviación só faz um vôo por semana cheguei no dia 30. O vôo não foi ruim, tirando o fato de as aeromoças terem 70 anos, em média. Mas o almoço que serviram foi bem razoável, desmentindo contra-revolucionários que me aconselharam a levar um
sanduíche, porque só serviam amendoins a bordo. Guardei minhas barrinhas de cereais para depois.
Aproveitei os primeiros dias para flanar pela cidade, e a cada conversa com um cubano, cresciam em mim variados sentimentos - qual seria a tradução exata para mixed feelings?
O mais forte foi a sensação de que nós, brasileiros, pertencemos realmente à América Latina. Parece óbvio, mas não é. No Brasil e na maior parte do continente, estamos sempre com os olhos voltados para os Estados Unidos e a Europa, numa espécie de complexo de inferioridade que produz uma inconfessável vergonha de pertencer ao Terceiro Mundo, para usar uma expressão fora de moda. Em Cuba, o que se nota é o orgulho que todos sentem de serem latino-americanos. Em nenhum outro lugar vi uma identidade nacional
tão fortemente estampada na população. Por isso gostei quando, de volta ao Brasil, vi Hugo Chavez responder a um repórter, na posse de Lula, se ele não tinha medo de deixar o seu país num momento de crise. "Eu não deixei o meu país. Eu estou no meu país, que é a América Latina".
Mas passear por Havana traz também um sentimento de melancolia. Uma das conquistas da Revolução, e não a menor delas, foi a abolição total do tempo, o que se nota não somente na conservação da arquitetura e das paisagens urbanas (embora já se vejam alguns carros importados circulando entre aquelas banheiras pré-59 e os Ladas de fabricação soviética - não sem razão, os mecânicos cubanos são considerados os melhores do mundo, por fazerem
andar essas geringonças, e por fazerem voar os aviões da Cubana...), mas também pela maciça propaganda política: um desavisado acreditaria que a Revolução aconteceu no mês passado, em não há 44 anos, a julgar pela ostensiva propaganda ideológica a que são submetidos diariamente todos os cidadãos.
Mas essa situação não pode perdurar. A economia cubana vai mal das pernas desde que parou de receber a mesada da União Soviética. Desde meados dos anos 90 Cuba atravessa uma crise séria, eufemisticamente chamada de "período especial". Hoje faltam artigos básicos nas prateleiras, e não apenas os supérfluos, como dez anos atrás. Quando, por fim, o comunismo acabar, os
capitalistas vão entrar massacrando, e não vai restar pedra sobre pedra. Hotéis cinco estrelas vão ocupar o Malecón. Deus queira que eu esteja errado, mas os comunistas não acreditam em Deus. Ai de ti, Havana, Cancun é você amanhã.
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Outra coisa que aproveitei para fazer nos primeiros dias de folga
compulsória foi entrevistar o escritor cubano Pedro Juan Gutierrez, autor do polêmico Trilogia Suja de Havana. Figura interessantíssima. Poderia viver em qualquer lugar do mundo (seus livros vendem muito na Europa e também no Brasil), mas ele prefere continuar num apartamento minúsculo no oitavo andar de um prédio sem elevador, em Centro-Habana, com um banheiro compartilhado com 20 outros moradores. Como em seus livros, ele falou
bastante sobre sexo. "Para mim não existe homossexuais e heterossexuais, somos todos mamíferos". Então tá...
Na despedida, Pedro Juan me pediu que trouxesse alguns livros para um amigo brasileiro. Não podia enviá-los pelo correio, explicou envergonhado, porque sua correspondência é controlada. A situação de Gutierrez é peculiar. Seus livros não circulam em Havana, e
nenhum cubano com quem conversei gosta muito dele. Depois que fiz a entrevista, vieram me dizer que provavelmente o motorista de táxi que me deixou em frente ao seu prédio anotou minha visita e a relatou a instâncias superiores. Como, segundo o escritor cubano exilado em Londres Guillermo Cabrera Infante, um em cada três cubanos é agente secreto ou informante, me bateu uma certa paranóia, ainda mais porque andei lendo Mea Cuba
antes de embarcar. Fidel já sofreu mais de 200 atentados, e se nenhum deles deu certo é porque o serviço secreto cubano é um dos melhores do mundo, me explicam. Felizmente não sofri nenhuma retaliação. O máximo que poderia me acontecer, soube depois, seria não ser convidado para um coquetel em que Fidel estivesse presente. Mas Fidel não compareceu a nenhum coquetel.
Por fim, para ocupar meu tempo enquanto não começava a labuta, tomei muitos mojitos e fumei alguns puros, na companhia de cubanos ou na do cineasta José Joffily, uma amizade instantânea, que fez parte do júri principal do Festival. Pois é, ainda não falei do festival.
A cerimônia de abertura foi no imponente Teatro Karl Marx. O filme exibido foi O Crime do Padre Amaro, de Carlos Carrera, do qual não gosto nada. O diretor, bastante jovem, é muito simpático e cordial. Pergunto, na entrevista coletiva, sobre as dificuldades da adaptação do romance de Eça de Queiroz, e ele reconhece que o padre do romance é um personagem muito mais maligno que o do filme - e este é justamente um dos defeitos que se vêem na tela. Trata-se de um filme convencional, arrastado e velho na forma e no
conteúdo. Um novelão, pretensamente anticlerical na superfície mas altamente conservador. E, particularmente, não gosto do ator Gael Garcia Bernal, a meu ver um sub-galã, sem nenhum talento especial (o que está deixando os cubanos muito preocupados, já que ele personifica o jovem Che no próximo filme de Walter Salles).
Quem viu os resultados do júri oficial deve estar se perguntando como Padre Amaro ganhou tantos prêmios, incluindo, surpreendentemente, o de melhor roteiro (que eu daria a O Invasor, de Beto Brant). A explicação é simples: o presidente do júri oficial era o cineasta mexicano Paul Leduc, que puxou abertamente a brasa para a sardinha do seu país. Leduc faz o tipo blasé. Saiu de diversos filmes em competição com menos de meia hora de projeção. Entediado, não se interessou em assistir à nova versão de Frida, da americana Julie Taymor, exibido em sessões especiais com presença da diretora, com mais de dois mil espectadores cada. Algo no mínimo estranho, já que o principal filme de Leduc é justamente Frida, Natureza Viva. Em ompensação, Julie, por sua vez, também fez pouco do filme de Leduc, do qual disse nem se lembrar. "São visões muito diferentes sobre a vida de Frida", ela afirmou. Certamente. Eu ainda prefiro a de Leduc.
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Pausa para apresentar os outros jurados da FIPRESCI: o presidente era Grégory Valens, um francês típico, com tudo o que ser francês implica, para o bem e para o mal; da Inglaterra, veio Sheila Johnston, que não falava uma palavra de espanhol e que, salvo nas raras sessões em que havia tradução simultânea, ficou mais perdida do que cego em tiroteio - sua indicação foi verdadeiramente incompreensível; do Uruguai, Fernando Palumbo, sempre muito
bem humorado, como todos os uruguaios que já conheci; de Cuba, Joel Del Rio, uma espécie de versão cubana e mais jovem de Pedro Almodóvar, em mais de um aspecto. Como o presidente da FIPRESCI cubana, Toni Mazón, teve problemas de saúde, coube a Joel organizar toda a logística do júri, sem que tivesse a menor vocação para isso. A conselho de meu colega Marcelo Janot, levei
pacotes de café brasileiro para Toni e Joel, o que lhes agradou muito.
No segundo dia foi exibida uma das melhores surpresas do festival, o
argentino Tan de Repente, que dividiu o prêmio principal do júri oficial com Cidade de Deus. Dirigido por Diego Lehman, Tan de Repente é um desses filmes deliberadamente pequenos e despretensiosos, mas muito bem realizados, um road-movie "sandalinha" sobre três moças que partem em busca de um lugar impossível. Bem melhor, a meu ver, que Bolívar Soy Yo, de Jorge Ali Triana, a que eu já tinha assistido no Festival de Mar Del Plata, e que não me impressionou muito. A história do ator que se confunde com seu personagem, embora narrada com correção, carece
de novidade. Mas o ator principal, Robinson Diaz (um sósia de Guilherme Karam) é realmente muito bom.
Aí começaram as bombas. A co-produção El Lugar Donde Estuvo El
Paraíso, de Gerardo Herrero, foi uma decepção total. O veterano
canastrão Federico Luppi faz o papel de um cônsul no meio da floresta amazônica, na época das ditaduras militares, numa história sem pé nem cabeça. Já Ciudades Oscuras, de Fernando Sariñana, mistura nada menos que 12 (doze!) histórias num filme visualmente arrojado, cheio de recursos digitais, o que periga se transformar num câncer para as novas cinematografias: pois são recursos usados de forma pouco funcional, sem nenhum critério. O resultado é que se fazem filmes cada vez mais sofisticados, tecnicamente, e cada vez mais superficiais. Um deserto de
idéias.
Aproveito a tarde para visitar a interessante exposição sobre Glauber
Rocha, interessante sobretudo pelos depoimentos gravados em vídeo de amigos e contemporâneos do cineasta. Eryk Rocha, seu filho (que estudou na escola de Cinema de San Antonio de Los Baños, que sempre tem meia dúzia de brasileiros entre seus alunos) levou ao festival seu desigual mas promissor Rocha Que Voa. Eryk é um jovem entusiasmado, mas me incomoda um pouco que tenha feito o seu primeiro filme justamente sobre o pai, quando o
habitual em filhos de artistas famosos é o impulso de negação. Resta saber se em seus próximos filmes Eryk vai "matar o pai", e se terá fôlego e talento para desenvolver uma carreira própria e genuinamente autoral.
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Havana não dorme. Cada noite tem uma festa diferente, oficial ou não. Do ponto de vista da boca-livre, as melhores são aquelas promovidas pelos consulados - do México, do Chile, da Espanha etc. Só a Embaixada do Brasil, vergonhosamente, não fez nada . Algo lamentável, sobretudo levando em conta que o país foi o que levou mais filmes para o festival. Quando conheci o nosso Embaixador, que parece cansado e louco para se aposentar, entendi por
quê. Há também as festas clandestinas: te dizem um horário para esperar um táxi, que chega abarrotado de gente. Você paga um dólar e te levam para uma cobertura onde rola de tudo. Só não gostei da música eletrônica, que se dependesse de mim seria banida não somente de Cuba mas de todo o planeta.
A festa oficial desta noite foi no Habana Libre, o antigo hotel da cadeia Hilton em que se hospedaram Fidel e seus aliados após a invasão de Havana. O quarto de Fidel é preservado intacto. Nos corredores, dezenas de fotografias mostram Fidel, Che Guevara e outros protagonistas da Revolução. Cada vez que vejo uma foto de Che fico emocionado. Para mim é ele que encarna o que a Revolução Cubana tem de melhor, o seu lado heróico, autêntico e despojado. Que ele tenha, após o triunfo da revolução, deixado o conforto do poder para fazer guerrilha na África é um gesto que por si só justifica o culto ao Che. Pena que sua imagem tenha sido tão banalizada, a ponto de já ter virado estampa de biquíni de uma grife capitalista.
No começo da festa os mojitos eram grátis, mas lá pelas tantas começaram a cobrar (3 dólares, na média, podendo chegar a cinco, na Bodeguita Del Médio, o bar freqüentado por Hemingway, que preferia daiquiris). Estava eu comprando o meu quinto mojito da noite quando uma loura peituda e muito bonita, com seus 18 anos, pediu que eu lhe pagasse um drinque. Conversa vai, conversa vem, ela me propôs passar a noite com ela, por 30 dólares, mas 20
para a casa de família onde consumaríamos o ato, ou mais 50, se eu quisesse levá-la para o meu hotel. O mais engraçado era a sua estratégia de sedução: dizia, por um lado, que sabia conversar sobre política; e, por outro: "Mira, tengo ojos azules...". Antes de pensar seriamente em fazer as contas - era uma puta cara, pois os salários médios em Havana são de dez dólares, e um médico ganha 20 dólares por mês - julguei que incentivar a prostituição seria uma atividade contra-revolucionária, e tergiversei. Hay que endurecerse?
A prostituição em Cuba é uma tradição centenária, que a Revolução não conseguiu erradicar. Aonde quer que se vá, profissionais do sexo estarão oferecendo os seus serviços, tanto homens (os famosos jineteros) quanto mulheres. Sofri assédios parecidos quase que diariamente, nas mais variadas situações. E isso mesmo levando em conta que, se eu andasse de mãos dadas com uma cubana pelo Malecón, ela poderia ser presa. Cuba, país de contrastes e contradições.
Mas voltemos aos filmes:
Uma Vida Em Segredo, de Suzana Amaral, foi bem recebido pela platéia
(que interage com os filmes de uma forma impressionante, aplaudindo, vaiando
etc), mas não chegou a emocionar os jurados. Corazón de Fuego, de
Diego Arsuaga, traz mais uma vez Federico Luppi numa história bastante boba,
sobre um grupo de idosos que tenta impedir que uma locomotiva seja vendida
para os Estados Unidos.
Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, foi uma unanimidade. Encantou
todos os jurados e todas as platéias. Em parte, talvez, porque os
personagens, excluindo o fator violência, praticamente ausente em Cuba, têm
muito de um temperamento cubano (é difícil evitar clichês como este, mas
alguns clichês têm um fundo de verdade). Embora o Festival não tivesse ainda
chegado à metade, ninguém acreditava que surgiria outro filme melhor na
competição. E não surgiu mesmo.
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Eu já tinha visto Gabriel García Márquez em três ocasiões: na cerimônia de
abertura, ao lado de Alfredo Guevara (amigo de Fidel desde os anos 40,
segundo disseram homossexual poderoso e que lançou dois livros excelentes
durante o Festival, um sobre Glauber e outro sobre Cesare Zavattini) e duas
vezes, jantando, no meu hotel - o Melià Cohiba, já que os jurados foram
isolados dos demais convidados, hospedados no tradicional Hotel Nacional. Na
quarta vez, incentivado por Joffily, subi no meu quarto, peguei um exemplar
de meu livro sobre Machado de Assis e fui oferecer a ele.
Gabo se mostrou extremamente interessado, perguntou o que eu fazia ali etc.
Expliquei que estava no júri da FIPRESCI, disse que era uma emoção especial
conhecê-lo pessoalmente, e voltei para a minha mesa. Na noite seguinte, na
recepção oferecida pela Embaixada do México (a embaixatriz, solteira, é um
excelente partido, aliás), ele tomou a iniciativa de vir falar comigo para
dizer que é amigo de Nelida Piñon, que assinou o prefácio de meu livro.
Conversamos cerca de 20 minutos, até que tive a idéia infeliz de pedir uma
entrevista. Ele negou friamente e se afastou. Mais tarde me disseram que
hoje em dia ele só dá entrevistas pagas, a 50 mil dólares. O dinheiro não
fica para ele, vai para a Escola de Cinema, mas mesmo assim a idéia de
cobrar por entrevista me parece antipática. Bem, García Márquez tem o
direito de ser antipático.
Os filmes do dia: O Invasor, que não fez em Havana o sucesso que eu
esperava, tlavez por mostrar um lado do Brasil que interessa menos aos
cubanos; Paraíso B, de Nicolas Acuña, um filme moderninho que junta
ação, violência e erotismo mas deixa a desejar. E Um Oso Rojo, para
mim uma gratíssima surpresa, um dos melhores filmes do Festival. Dirigido
por Israel Adrián Caetano, conta a história de um ex-presidiário e sua
relação com a ex-mulher e a filha de 7 anos. Em alguns momentos o diretor
abusa da credulidade do espectador - como quando o protagonista mata dois
bandidos com uma bala só - mas a forma como o diretor retrata a relação
entre pai e filha é tão delicada, e o desempenho do ator principal tão
eficiente, que o filme merecia sair de Havana com mais prêmios.
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Visito o Museu da Revolução e lá vejo o Granma, o iate de onde
desembarcaram em Cuba, vindos do México, Fidel, Che Guevara, Camilo
Cienfuegos e mais 79 guerrrilhieros, em 1956. Foram recebidos a bala pelas
tropas de Fulgencio Batista, que já sabia dos planos de invasão. Dos 82
guerrilheiros, 70 foram assassinados, imediatamente ou após serem presos e
torturados. Quis o destino que entre os 12 sobreviventes estivessem,
justamente, Fidel Castro, seu irmão Raul, Che e Camilo, que nos três anos
seguinte desenvolveram a guerrilha na Sierra Maestra, até o triunfo final da
Revolução, em 1959.
Na saída do museu, sou abordado por dois negões que me oferecem charutos.
Passear a pé em Havana, sobretudo em Habana Vieja e Centro-Habana, é ser
abordado de cinco em cinco minutos por gente a fim de faturar um trocado,
seja se oferecendo como guias informais, seja vendendo puros - ou impuros,
já que os charutos vendidos na rua são de origem altamente suspeita. Aliás,
os charutos fumados pelos cubanos são de qualidade muito inferior aos feitos
para exportação, e que chegam a custar sete dólares cada. Da mesma forma, as
melhores praias são exclusivas para turistas. É um dos lados ruins da
sociedade cubana. Outra coisa: basta falar que sou brasileiro para que me
digam que está passando na televisão Chiquinha Gonzaga e me perguntem
como a novela (ou mini-série, sei lá) acaba. Ninguém acredita quando digo
que não assisti.
O poder das novelas brasileiras é impressionante. Basta dizer que o melhor
filme do Festival, eleito pelo júri popular, foi Tolerância,
simplesmente porque Maitê Proença - popular por causa de duas novelas
exibidas em Cuba, Dona Beija e Felicidade - é a protagonista,
e mais ainda porque aparece nua (em Cuba as revistas masculinas são
proibidas, e as cenas de nudez geralmente são cortadas dos filmes
estrangeiros).
Numa feirinha perto do hotel, jogo xadrez com um grupo de cubanos. O jogo é
muito popular em Cuba, que já teve um campeão mundial, nos anos 20, José
Raul Capablanca. Depois de perder as partidas iniciais, ganho cinco
seguidas, o que me garante a simpatia do grupo: todos queriam me desafiar.
Depois da maratona, compro um boné do comandante Fidel, uma boina de Che,
uns quadrinhos coloridos mostrando a Bodeguita e alguns livros - incluindo,
surpreendentemente, Puro Humo e Habana Para Um Infante
Defunto, de Cabrera Infante. Digo à vendedora que achava que este autor
era proibido em Cuba. Ela responde que sim, mas como ninguém o conhece, ela
pode vendê-lo sem susto.
Vender puros na rua também é proibido, mas outro negão me explica que não
tem opção, pois só ganha sete dólares por mês. Chego à conclusão que,
paradoxalmente, quanto mais repressor é um regime, maiores são as brechas
para burlar as normas. O que é talvez deliberado, uma válvula de escape
calculada para conter a insatisfação das massas.
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O festival chega à sua metade, e a impressão que tenho é a de que Brasil e
Argentina são mesmo os países com o cinema mais vigoroso hoje em dia. Quanto
ao Festival em si, parece que já foi maior e mais importante do que é hoje.
Creio que ele sofre um pouco por ser realizado no final do ano, quando
muitos filmes que já participaram de outros festivais não podem entrar na
competição. O nível dos filmes é mediano, mas ainda assim bastante superior
ao do outro festival ao qual fui como jurado FIPRESCI em 2002, Mar Del
Plata. Havana também parece estar sofrendo por conta de uma rixa, que não
entendi direito, entre Alfredo Guevara e o Icaic. Achei que não valia a pena
me aprofundar no assunto. Aliás o almoço que Guevara ofereceu em sua suíte
foi senacional. Bem melhor que os filmes do dia.
El Bonaerense, de Pablo Trapero: bem intencionado, mas tecnicamente
sofrível, lembrando em alguns aspectos o cinema que se fazia no Brasil nos
anos 70. Em compensação, Histórias Mínimas surpreende pela leveza e
pelo carinho do diretor Carlos Sorin por seus personagens. Era um dos filmes
favoritos antes de começar o Festival, e parece que está sendo disputado a
tapa pelas distribuidoras americanas. Não chega a ser excepcional, mas
impressiona. Lugares Comunes, de Adolf Aristarain, mais uma vez com
Federico Luppi, é, como o título indica, uma sucessão de lugares comuns, com
uma narrativa grandiloqüente, cheia de frases feitas e altamente previsível.
Um curta-metragem me chama a atenção: Las Insoladas, bem
representativo da graça e da originalidade do novo cinema argentino. O filme
é sobre duas jovens lesadas que ficam tomando sol no terraço de seu
edifício, enquanto especulam sobre os planos amalucados de uma viagem a
Cuba. Engraçadíssimo. O curta brasileiro Dadá, muito bem recebido,
também merece destaque. Todo Por Ella, que mostra uma noite na vida
de um jovem toxicômano, também tem valor.
Entre os filmes brasileiros na competição, estavam também As Três
Marias, de Aluízio Abranches, que não levou nada, e,
incompreensivelmente, Abril Despedaçado (rebatizado como Detras
Del Sol), de Walter Salles Jr, que eu achava que era do ano anterior. E
ainda Madame Satã, em relação ao qual muitos cubanos tiveram a mesma
impressão que eu: é um filme que procura compensar pela fotografia diversas
carências, entre elas a péssima reconstituição de época e um roteiro que não
decola em momento algum.
Mais uma bomba: El Leyton (Hasta que la muerte nos separe),
inqualificável. E mais um filme muito bom: Cuentos de Hadas Para Dormir
Cocodrilos, de Ignácio Ortiz, um épico em clima onírico sobre o amor, a
morte e as disputas de poder numa família. Por fim, La Virgen de La
Lujuria, de Arturo Rispstein, muito longo e rebarbativo, só vale pela
presença carismática da bela Ariadna Gil. E assim já vi todos os filmes da
competição.
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Tanta coisa legal aconteceu nesses 15 dias que fica difícil não esquecer
alguma. Tive a honra de ser uma das milhares de pessoas que superlotaram a
Sala Avallaneda do Teatro Nacional para ver um concerto que reuniu cerca de
15 músicos cubanos na "diáspora". Músicos de altíssimo gabarito, num
espetáculo comovente, e que para os brasileiros teve o sabor adicional de
contar com uma participação especial de Lenine.
Oura boa experiência foi participar, com uma conferência, sobre a situação
da crítica de cinema na América Latina, onde tive a chance de gastar o
espanhol que aprendi em dois anos de Instituto Cultural Brasil-Argentina, e
até que não fiz feio. Todos os participantes apresentaram intervenções muito
ricas, que devem ser transcritas em breve no site da FIPRESCI.
Já no último dia do Festival, quando eu fui à sala da organizadora Ana
Rodriguez correr atrás de um convite para a cerimônia de encerramento, dei
de cara com Roman Polanski. Muito irritado, ele estava explicando o seguinte
para duas ou três pessoas do Festival: que só falaria sobre seu filme (O
Pianista), e não sobre as insinuações de que ele teria pedido que
enviassem jovens moçoilas para o seu quarto. Pode ser coincidência, mas no
Rio rolou o mesmo boato...
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Tudo que é bom dura pouco, mas a decolagem dos aviões da Cubana demora
muito. O vôo de volta atrasou cerca de oito horas. Vários passageiros
tiveram sua bagagem revistada, inclusive a VJ da MTV Marina Person. Pelo que
ela entendeu, queriam ver que livros ela estava carregando. Nessa hora dei
graças a Deus por não terem aberto a minha mala, com livros autografados de
um escritor proibido. Por fim o avião decolou, rumo a São Paulo, onde tive
que pernoitar antes de voltar ao Rio. E minha aventura termina aqui. Viva la
revolución!