Críticas


CÍRCULO, O

De: JAFAR PANAHI
18.10.2010
Por Carlos Alberto Mattos
O CÍRCULO VICIOSO

Texto escrito em setembro de 2001



“O Círculo” começa numa maternidade e termina numa cela de prisão. Entre esses dois espaços, filmados de maneira semelhante, Jafar Panahi desenha o inferno das mulheres iranianas, condenadas, desde o nascimento, a um posto de irrevogável inferioridade na escala social. Sem um homem ao lado (ou melhor, a dois passos adiante), elas são párias e suspeitas. Sem um documento de identidade na bolsa, estão à beira da condenação.



No percurso de um dia pelas ruas abafadas de Teerã, o filme enfoca uma sucessão de mulheres que se encontram ou se cruzam fortuitamente. Seu grau de “culpa” é crescentemente explícito. A primeira, que não chegamos a ver, só cometeu o crime de dar à luz uma menina – e por isso terá de enfrentar o ódio da família do marido. Duas presidiárias, cuja infração não nos é dado conhecer, aproveitam um dia de licença para tentar escapar. Mais adiante, uma fugitiva da prisão procura ajuda para fazer um aborto. Uma mãe abandona a filha na rua para que ela seja adotada. Uma prostituta é recolhida ao cárcere.



Os homens não têm papel importante a não ser o de guardas, pequenos vendedores, parentes enraivecidos. No mais, circulam livremente por uma sociedade da qual são os donos absolutos, ainda que também tolhidos por constantes batidas policiais, pontos de inspeção etc. A Teerã que aparece aqui não tem o lirismo seco do país rural que outros filmes iranianos veiculam com sucesso há mais de uma década. Jafar Panahi (“O Balão Branco”, “O Espelho”) é um cineasta da cidade caótica, das deambulações incessantes, das longas viagens de ônibus que nem sempre conduzem os personagens aos alvos de sua persistência quase insana. De qualquer maneira, o clima de medo, os sinais da globalização econômica (captados nos detalhes das locações externas) e a “decadência” moral da capital dos aiatolás nunca foram mostrados com tanta coragem. O tabu da prostituição é abordado sem subterfúgios, o que até então parecia impensável numa produção autenticamente nacional.



“O Círculo” foi realizado sob a desaprovação do governo e, mesmo depois de vencer o Festival de Veneza do ano passado, permanece até hoje censurado para exibição pública no Irã. Em abril último, de passagem pelo aeroporto de Nova York, Jafar Panahi foi vítima de uma ação constrangedora dos policiais aduaneiros americanos e, como não se deixasse fotografar, chegou a ser acorrentado e deportado de volta a Hong Kong.



Mas é preciso dizer que toda a audácia do diretor, nos fronts interno e externo, não garante a “O Círculo” o qualificativo de um grande filme. Para uma platéia razoavelmente bem informada, ele não faz mais que chover no molhado. Sobretudo para quem, já há três anos, viu o documentário “Divórcio à Iraniana”, de Kim Longinotto e Ziba Mir-Hosseini, que flagrava cenas de discriminação explícita numa vara de família de Teerã. No filme de Panahi, em razão do tema adulto, a proverbial “ingenuidade” do cinema iraniano não conta muito a favor. A denúncia, em que pese sua importância no front doméstico, soa simplista e mecânica, até mesmo porque as personagens não representam um extrato médio da população feminina. O modelo de narrativa, com a errância constante das personagens e a exploração exasperante do tempo real, também se mostra repetitivo, sem produzir o clima de asfixia pretendido.



Beneficiado pela superestima, “O Círculo” chama a atenção para um conjunto de procedimentos dramatúrgicos do cinema iraniano que, aos poucos, deixam de ser virtude para constituírem uma limitação. O bravo Jafar Panahi é uma presa desse círculo vicioso.

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