Se a mera idéia da viagem de um elefante de Lisboa a Viena sugere uma empreitada árdua e de fôlego, a produção da viagem não deve ser tarefa menos complexa. Arrumar os pertences, definir itinerários, lidar com os desvios, com os inesperados, com o mau humor do bicho, com as peculiaridades de tempo e os fusos horários. Imagine então quando o elefante é um dos mais importantes escritores da língua portuguesa, prêmio Nobel de literatura e se chama José Saramago. Descobrir o mundo, o dia-a-dia e a intimidade do homem que abriga o escritor de obras primas como Ensaio sobre a Cegueira e A Caverna foi o que se propôs fazer o diretor português Miguel Gonçalves Mendes.
José e Pilar, que foi um dos filmes mais procurados na edição deste ano do Festival do Rio, acompanha o processo de criação, escrita, publicação e lançamento de A viagem do Elefante, último livro do escritor, que morreu em julho deste ano. Mas esse é apenas o ponto de partida, uma linha cronológica, um fio de ouro, que ajuda a contar, melhor dizendo, a descobrir uma outra história. A história da sólida, bela e irresistível relação entre José e Pilar, a história de um romance unido por um espaço de 28 anos de diferença entre idades, pela separação de dois países (Portugal e Espanha), por um pacto de silêncios e olhares, de cumplicidades e parcerias, e de uma admiração irrestrita de um pelo outro.
Mendes, que conheceu Saramago em 2001, e levou quatro anos trabalhando no filme, disse ter ficado encantado e surpreso com o papel (fundamental) de Pilar Del Rio na vida do escritor. Ela foi assessora, secretária, organizava a agenda de viagens, as entrevistas, os encontros e os eventos; foi também esposa, companheira, algo entre um anjo da guarda, um general de esquadra e uma mãe zelosa.
Segundo o diretor, para além da história de amor entre o casal, o filme também é atravessado por uma espécie de urgência. Saramago, diz ele, começou a escrever muito tarde (aos 60 anos), e o que de melhor lhe aconteceu – os livros, o reconhecimento, o sucesso, Pilar – aconteceu na fase final de sua vida. Por isso a morte, a possibilidade de não completar o livro, o medo de não dar conta do peso do nome, e a forma como se lança nos compromissos estabelecidos por uma agenda completamente inadequada a uma pessoa com as graves deficiências de saúde que o escritor desenvolveu, estão impressos no roteiro. Mas, diferente de uma parceria como a de Wim Wenders e Nicholas Ray em Lightning over water (1980), que se uniram para transformar a morte de Ray em cinema, o triângulo José-Pilar-Mendes, aqui, se organiza para filmar a força da literatura como motor da vida.
A câmera de José e Pilar busca a intimidade do casal, e a forma como o cotidiano e as atividades de um prêmio Nobel se desenrolam, de maneira respeitosa. A intimidade das imagens é a mesma intimidade – desafiadora e profunda - que encontramos nos livros de Saramago; livros que o próprio autor dizia que eram a melhor maneira de falar dele mesmo. Miguel Mendes respeitou os silêncios, não procurou iluminar uma intimidade velada pela sombra do próprio escritor, mas a luz que esse convívio intimo é capaz de irradiar. Se o título do filme dá idéia de um retrato privado, é preciso a experiência do filme para compreender que ele se chama assim simplesmente porque Saramago e José e Pilar são duas unidades interdependentes e, quiças, equivalentes.
JOSÉ E PILAR
Portugal, Brasil, Espanha, 2010
Elenco: José Saramago, Pilar Del Rio, Gael Garcia Bernal, Chico Buarque, Paco Ibañez
Direção e roteiro: Miguel Gonçalves Mendes
Fotografia: Daniel Neves
Montagem: Cláudia Rita Oliveira
Duração: 125 minutos