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SUNDANCE 2003: A VOLTA DOS BONS FILMES

04.02.2003
Por Carlos Brandão
SUNDANCE 2003: A VOLTA DOS BONS FILMES

SALT LAKE CITY (EUA) - O Festival de Sundance encerrou sua 19a edição no último dia 25 deixando um ótimo saldo de bons filmes e, de quebra , um discurso inflamado pela liberdade do criador e organizador do festival, Robert Redford, na noite de abertura.



Com o Abravanel Hall – maior espaço de espetáculos de Salt Lake City, onde o Sundance é aberto todos os anos – totalmente lotado, Redford subiu ao palco para dizer que o Sundance não deve ser apenas um espaço para o cinema independente, mas também para a independência de idéias e da liberdade de expressão. No mesmo fôlego, manifestou-se contrário aos planos bélicos do Governo Bush, afirmando que “discordar não significa necessariamente a expressão de uma atitude anti-patriótica”. Nos dias seguintes, como que obedecendo a um código, as palavras de Redford detonaram manifestações nas ruas de Park City durante todo o festival, sempre sob forma de canções, tambores e cartazes (“o sangue humano vale mais do que um dólar”, dizia um deles em alusão ao preço do galão de gasolina nos EUA). Acabado o discurso, ainda sob muitos aplausos, Redford chamou ao palco Ed Solomon, diretor de Levity, filme de abertura do festival.



O drama de Solomon – mais conhecido como roteirista do competente Homens de Preto – conta a história de Manuel Jordan (interpretado pelo cada vez melhor Billy Bob Thornton) , em busca de redenção ao longo de 19 anos, preso por ter matado um adolescente durante um assalto. Jordan, entre outras purgações, manteve a foto de sua vítima na parede de sua cela , de forma a ser obrigado a encará-la dia e noite. Além de Thornton, encabeçam o ótimo elenco Morgan Freeman, Holly Hunter e Kirsten Dunst.



Nas calçadas geladas de Park City, a pequena estação de esqui a 40 minutos de carro de Salt Lake onde o festival realmente acontece, era fácil encontrar estrelas como Dustin Hoffman, Francis Ford Coppola, Holly Hunter, Al Pacino, Salma Hayek e Matt Dillon , além dos grupos de protesto contra a guerra que fechavam as ruas e davam o seu recado. Contando com a proteção da polícia na organização dos protestos, os manifestantes tiveram até o aval do diretor geral do Sundance, Geoffrey Gilmore: “é importante que o espírito independente do Sundance esteja não só filmes, mas também nas ruas”.



Destaques das mostras competitivas - Nas competições de dramas um dos filmes mais badalados – com sessões lotadas e filas intermináveis na tentativa de obtenção de um ingresso – foi Party Monster, que trouxe de volta o ator Macaulay Culkin após oito anos afastado das telas. Culkin reapareceu como o ator principal do filme de Fenton Bailey e Randy Barbato, um thriller operático baseado na história real do promoter Michael Alig. Após seu envolvimento com drogas pesadas e alguns acontecimentos trágicos envolvendo até assassinatos, suas festas em Nova York tornaram-se mórbidas e violentas e sua vida saiu fora de controle. Culkin tem um ótimo desempenho como Alig, mostrando que continua com o mesmo talento que o tornou famoso quando ainda era um pré-adolescente . Seth Green e Chloe Sevigny também brilham no elenco.



Destacaram-se ainda na mostra de dramas : The Cooler, de Wayne Kramer – com William H. Macy, Alec Baldwin e Paul Sorvino – sobre um homem contratado por um cassino para “esfriar” a sorte de ganhadores . American Splendor (ganhador do Grande Prêmio do Júri), de Shari Spring Berman e Robert Pulcini ; All the Real Girls,de David Gordon Green ; Pieces of April, de Peter Hedges ; Dopamine, de Mark Decena, com Bruno Campos (O Quatrilho) fazendo um papel relevante e The Station Agent (Prêmio de Audiência), de Tom McCarthy, valem a fila para o ingresso.



Na American Spectrum, uma seção dedicada a diretores emergentes, o destaque ficou com Raising Victor Vargas, de Peter Sollett e sobretudo com Buffalo Soldiers, de Gregor Jordan, uma comédia dramática baseada em fatos reais ocorridos numa base americana na Alemanha em 1989, onde quadrilhas de soldados traficavam drogas e super faturavam compras para o quartel. O filme estreou nos Estados Unidos na semana dos atentados em Nova York e foi rapidamente recolhido às prateleiras por receio de má repercussão nas bilheterias. Voltou agora no Sundance. Durante uma das sessões, uma mulher irritada com a história jogou uma garrafa de plástico na platéia, atingindo de leve a atriz Anna Paquin. Foi retirada da sala e detida por pouco tempo.



O britânico Danny Boyle lançou na seção Premiere o seu 28 Days Later. O filme é um thriller de terror sobre o fim do mundo, na linha seguida pelo cineasta George A. Romero em 1978 com Zombie, Despertar dos Mortos e depois em 86 com Dia dos Mortos. Romero é conhecido como o cineasta que praticamente inventou os “Zumbis, mortos-vivos”. 28 Days Later segue a história de Jim (Murphy). Um dia ele acorda num hospital londrino, depois que um vírus mortal atacou a cidade. Ao correr para fora, descobre as ruas totalmente desertas, entulhos em todo lugar , ausência de atividade ou vida de qualquer espécie : os britânicos haviam desaparecido e com eles provavelmente o restante da humanidade. Pouco depois, Jim encontra um quarteto de sobreviventes e juntos vão tentar manter-se vivos : mas logo descobrirão que não é só o vírus que os ameaça. Meio frustrante – afinal, se esperava muito mais de Boyle do que um trash envergonhado – 28 Days Later merece ser esquecido.



Importante lembrar, este sim um dos melhores – talvez o melhor – filme do festival: In America, do irlandês Jim Sheridan, uma obra auto biográfica que narra a ida do até então desconhecido autor de Em Nome do Pai e Meu Pé Esquerdo e sua família para Nova York , como imigrante ilegal para tentar uma carreira de ator. Num filme em que extravasa sensibilidade, Sheridan mostra os tempos difíceis que viveu num edifício/cortiço da Big Apple em busca de uma oportunidade. As interpretações das meninas-irmãs Sarah e Emma Bolger como as filhas de Sheridan, e de Samantha Morton como a sua mulher, são de comover uma alma de pedra.. Djimon Hounsou, como um pintor negro caribenho (ou africano?) misterioso compõe um personagem difícil de esquecer.



Mais três (pequenas) pérolas (e uma decepção) da seção Premieres : Soldier’s Girl, de Frank Pierson, sobre um caso real de um soldado de elite pára-quedista que se apaixona por um travesti em Nashville e é morto por isso ; Confidence, de James Foley, com Dustin Hoffman, Edward Burns, Raquel Weisz e Andy Garcia , um bom thriller com final surpreendente ; e Northfork, de Michael Polish , um criativo painel surrealista sobre um fato histórico americano, com James Woods, Nick Nolte e Daryl Hannah, são obras dignas de serem vistas e apreciadas. A decepção ficou por conta de The Singing Detective, de Keith Gordon, baseado na maravilhosa mini série que Dennis Potter fez para a tevê em 1986. Adaptado pelo próprio Potter para o cinema pouco antes de sua morte, todo o clima noir/musical que dava à história um charme único é perdido numa montagem equivocada e numa direção de atores displicente. Robert Downey, Jr não convence como o Detetive Dark e no elenco, que inclui Katie Holmes, apenas Robin Wright Penn se salva do desastre total. Mel Gibson, produtor do filme, também aparece (quase irreconhecível) como um médico psiquiatra.



Atrás das Câmeras - Em American Showcase, uma espécie de seção para selecionados especiais, dois atores estrearam na direção : Salma Hayek, com The Maldonado Miracle, uma produção da Showtime feita para tevê, e o ídolo juvenil Matt Dillon, com City of Ghosts. Numa sessão concorrida no Eccles, o maior cinema de Park City, Dillon falou sobre a origem de The City of Ghosts: “eu sempre gostei de contar histórias e desejava fazer um filme com um tema intrigante passado num lugar exótico”, acrescentando que o Camboja foi a locação perfeita para a trama roteirizada por ele mesmo e por Barry Gifford (de Coração Selvagem e Perdita Durango) .



Para se lançar como diretor, Dillon teve o cuidado de se cercar de bons nomes: além do ótimo co-roteirista, o filme traz no elenco James Caan, que vive o parceiro de golpe do personagem de Dillon . Junto com o veterano Caan, Dillon também escalou Gérard Depardieu e Natascha McElhone, de O Show de Truman e estrela do recém lançado Solaris, de Steven Soderbergh. A fotografia ficou a cargo de Jim Denault, um nome freqüente no Sundance, onde já esteve com os premiados The Believer e Real Women Have Curves.



Documentários foram ponto alto - O Sundance 2003 assistiu a uma das melhores safras de documentários dos últimos tempos, gênero que recebe dos organizadores o mesmo destaque dado à mostra de dramas. A nova Mostra Documentário Mundial, inaugurada neste ano, recebeu mais de 200 inscrições e selecionou 10 filmes, entre eles Ônibus 174, de José Padilha. Na Mostra Competitiva de Documentários, destinada somente para produções norte-americanas, foram submetidos 537 candidatos e selecionados 16, número limite da seção. Entre os trabalhos das duas mostras, além do filme brasileiro, os destaques foram o ganhador do Grande Prêmio do Júri, Capturing the Friedmans, de Andrew Jarecki, sobre uma família de judeus acusada de crimes contra crianças ; The Day I Will Never Forget, de Kim Longinotto, um impressionante relato sobre a mutilação genital feminina no Quênia; Stevie, de Steve James , que venceu o Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, em dezembro último; Brother Outsider, de Bennet Singer, sobre Bayard Rustin, um importante militante dos direitos civis junto com Luther King, mantido na sombra por ser gay ; The Passion of Maria Elena,de Mercedes Moncada Rodriguez , sobre uma mulher índia no México e sua luta por justiça após ter seu filho atropelado por uma mulher branca.



A volta dos independentes - Muitos nomes que já passaram pelo Sundance voltaram nesta edição : entre eles, Keith Gordon, com o frustrante The Singing Detective. Gordon esteve na 16a edição do Sundance com o razoável Amor Além da Vida (Waking the Dead) . Outro repetente foi Campbell Scott, sucesso em 2000 com Grande Noite, que ele co-dirigiu com Stanley Tucci. Desta vez, Scott apresentou Off the Map, sobre um adolescente que tem que lidar com uma depressão profunda do seu pai. Não disse muito ao que veio. Bookies, mais uma história sobre a Máfia e mafiosos, marcou a volta de Mark Illsley, diretor de Happy Texas , lançado no festival de 99, sucesso de audiência em Park City, não confirmado pelas bilheterias do mundo exterior.



Entre os atores, também retornaram ao Sundance a sempre queridinha do festival Katie Holmes, que neste ano apareceu em The Singing Detective e estrelou o bom Pieces of April. Edward Burns voltou ao evento no elenco de Confidence. O ator estreou no Sundance em 95 como diretor com Os Irmãos McMullen, que foi o sucesso do festival naquele ano e também entrou para o seu folclore. Quase aos prantos, Burns não cansava de repetir que havia feito o filme com dinheiro emprestado dos pais e avós. Os brazucas, igualmente, tiveram retornados: José Padilha (Ônibus 174) já esteve no Sundance em 2000 como produtor de Os Carvoeiros e Monique Gardenberg(Benjamin) voltou a Park City após apresentar Jenipapo em 96.



Participação brasileira - Sem exageros ufanistas, a verdade é que os filmes brasileiros deste ano no Sundance foram mostrados sempre com casa cheia e muito interesse do público nos debates após as sessões. Benjamin, de Monique Gardenberg, adaptado da obra homônima de Chico Buarque, teve ótima recepção do público independente. A diretora já saiu do Sundance de contrato fechado com a Celluloid Dreams, que representará o filme em vários países e viabilizará a possibilidade de uma participação no próximo festival de Cannes. Mais de uma agência caçadora de talentos ficou interessada no trabalho de Cléo Pires, aplaudida em todas as sessões do filme.



Ônibus 174 teve igualmente sessões lotadas e um público estarrecido e meio assustado quando o filme terminava. José Padilha e Marcos Prado foram bombardeados com perguntas sobre o seqüestro, o seqüestrador e a violência no Rio. Como a grande maioria da platéia ignorava o desfecho do filme, as sessões foram sempre marcadas por suspense sobre como esse drama urbano terminaria. Madame Satã , embora aborde um tema difícil de captação imediata pelo público americano, também teve bons debates após as sessões. O filme será lançado em junho próximo no circuito americano, com previsão de exibição em 30 cidades dos Estados Unidos. Sobre esse aspecto, portanto, foi o filme brasileiro que conseguiu mais êxito prático até agora.



Sem maiores explicações, neste ano não foi dado o tradicional prêmio para a melhor película latino-americana, onde os filmes brasileiros são sempre fortes concorrentes (Sertão das Memórias, de José Araújo, Amores Possíveis, de Sandra Werneck e O Invasor, de Beto Brant, já foram vencedores). Perguntados, os organizadores prometem reavaliar a questão nas próximas edições.



Tema dominante e novas tecnologias - Como bem definiu o diretor do festival Geoffrey Gilmore no início do evento, “o perfil do diretor indie vem mudando”. Com temas diferentes do habitual, esta nova safra procurou abordar filmes sobre histórias reais e o mundo atual. O fato provocou outra declaração de Redford : “se vocês quiserem saber como está o mundo e a sociedade hoje em dia , assistam aos documentários”, afirmou. Sem perder o “espírito indie”, os organizadores apostaram em filmes inovadores e tecnologias avançadas. O Sundance é conhecido como um festival sem preconceitos de suportes ou de inovações – filmes realizados para TV, produções sob a égide do Dogma 95, técnicas de animação em rotoscopagem , vídeo digital, filmes feitos para a web e por aí vai. Criaram até um “posto” para os possíveis futuros cineastas – o Gen-Y Studio – para dar oportunidade aos estudantes de aprender a arte de explorar as possibilidades de um filme e participar de discussões sobre novas estéticas e culturas diferentes das suas.



Mas, acima de tudo, a maior preocupação continuou sendo a de que os filmes da programação não percam a originalidade – principal caraterística fundadora dos independentes – e acabem mergulhando na estética comercial do cinemão de Hollywood, que continua sendo um palavrão em Park City.

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