Especiais


FESTIVAL DE BERLIM 2011

15.02.2011
Por Nelson Hoineff
BERLIM 2011

(de Berlim)





HISTÓRIAS DE UMA EPIDEMIA (We Were Here), de David Weissman e Bill Weber - 17/02/2011



No inicio dos anos 1970, uma comunidade que se reunia tendo como epicentro uma pequena rua de São Francisco, a Castro Street, mudou a rotina daquela cidade da Califórnia e deflagrou uma revolução de comportamento visível no mundo inteiro. Ela tinha base nas transformações operadas pelo movimento hippie no espectro de possibilidades de se pensar o mundo, e na cristalização do pensamento libertário de líderes como Martin Luther King. Muitos líderes de movimentos de direitos civis nasceram ali ou por ali estenderam tentáculos de seu ativismo político; um deles, Harvey Milk, retratado há dois anos com perfeição por Sean Penn no filme de Gus van Sant. E vinte anos antes, no extraordinário documentário de Rob Epstein, The Times of Harvey Milk. (Uma versão cinematográfica do recente livro de Randy Shielts sobre Milk, The Mayor of Castro St, está sendo realizada neste momento).



Várias outras vezes o cinema falou sobre as possibilidades inauguradas em Castro St. Sobre a alegria (suspeito que o termo “gay” tenha nascido ali), sobre a intolerância e os embates derivados da segregação.



Não me lembro, no entanto, de ter visto algo consistente sobre uma tragédia que se abateu sobre o mundo e muito especialmente sobre o estilo de vida proposto em São Francisco: a epidemia de AIDS percebida a partir do final dos anos 70.



É um assunto sobre o qual ninguém quer falar, possivelmente pelas contradições entre a luta pelo controle da epidemia e a outra luta, pela defesa do estilo de vida imposto por Castro St. Ou pela pequena fronteira existente entre a banalização das emoções, a pieguice, ou a possibilidade de, através do cinema, dar voz aos grupos representados de maneira deturpada pela cultura dominante.



We Were Here, um documentário apresentado no Panorama, em Berlim, expõe com clareza essas contradições. Ele é dirigido por David Weissman (não confundir com o roteirista homônimo de Hollywood) e Bill Weber, a dupla que fez o celebrado The Cockettes, que não conheço.



Weissman e Weber usam apenas cinco entrevistas - e um grande material de arquivo, onde evidentemente não falta Harvey Milk - para contar a história do que era estar em São Francisco quando, de um dia para outro, todos os amigos começaram a morrer. A lenta descoberta do que estava acontecendo (no primeiro momento a doença era chamada de “câncer gay”), a perplexidade, o medo, a culpa e a incerteza sobre o que fazer quando a natureza parece tornar-se aliada do preconceito.



Dos cinco entrevistados, três são sobreviventes dos primeiros momentos da epidemia, estão saudáveis e certamente por isso constituem a veia ativista do filme, que evita incorporar de maneira explícita esse tom. É uma decisão controversa dos diretores, mas aparentemente correta. We Were Here narra o drama de Castro St. de maneira fria – ou, melhor dizendo, não panfletária. Entre a utopia proposta em San Francisco e os riots políticos de Stonewall , eles ficam com o primeiro. Não é um filme engajado em causa alguma – e justamente por causa disso cumpre melhor o seu papel.



Há imagens impressionantes de jovens de muito boa aparência e, poucos dias depois, definhantes; pessoas energéticas num dia e, logo depois, com sarcomas por todo o corpo nos seus leitos de morte. O filme promove uma apologia consistente do que a comunidade de Castro St estava ensinando ao mundo e a si própria; das suas lutas contra políticos conservadores e todo o establishment que procurava transformar em inferno opções pessoais de vida, para logo em seguida se deparar com uma galopante epidemia que muitos desses conservadores não hesitavam em definir como “punição”.



A epidemia não terminou nem está sob controle, mas, como mostra o filme, os números atuais são encorajadores; a AIDS já não é tão associada à culpa e a instituição do preservativo foi tão bem sucedida que hoje inúmeros jovens não cogitam de dissociá-los de toda atividade sexual. Os cinco entrevistados de We Were Here apontam para o fato de que a utopia de Castro St. permanece viva. O belo documentário de Weissman e Weber sugere que escolhas exigem às vezes formas de adaptação.





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DIAS DE NIETZSCHE EM TURIM (O CAVALO DE TURIM, de Bela Tarr) 15/02/2011



Em O Cavalo de Turim o diretor húngaro Bela Tarr depura o cinema como Picasso depura a pintura. É o mÍnino que pode se dizer de um filme de duas horas e meia feito de luz e emoção, cunhado com um acorde musical, dois atores (há poucos outros, de passagem eventual), quase nenhuma palavra. De planos-sequência muito longos, mas sobretudo de uma reverência ao tempo que só mestres do calibre de Bergman ou Angelopoulos eram capazes de fazer.



O Cavalo de Turim promove um mergulho que parecia improvável. Um pai e sua filha vivem sozinhos numa remota região, talvez na Itália, talvez não, sob uma tempestade interminável. Eles têm um cavalo velho e só. Alimentam-se apenas de algumas batatas e da água retirada de um poço próximo.



O cavalo, nos ensina o prólogo, tem uma conotação metafórica. Em janeiro de 1899, pouco antes de cair doente, Nietzsche deparou-se em Turim com um homem que tentava chicotear o seu cavalo. O filósofo atracou-se com ele e, logo em seguida, foi levado para casa. Ficou mudo e demente pelos próximos 10 anos, até a sua morte.



Ao longo do filme, pai e filha não trocam mais do que duas ou três frases. Aos poucos, o poço seca, as lamparinas já não mais acendem, o velho cavalo para de caminhar. Não há como sair dali. Não há como fazer nada.



Tarr, que ficou particularmente conhecido pela sua versão de quase 8 horas de duração para O Tango de Satan (1994), controla o seu tempo e suas imagens com uma precisão, beleza e sentido que pouco se vê no cinema. Seu filme, em competição em Berlim pela Hungria, é muito melhor do que todos os outros competidores juntos. Tarr promove um mergulho suave em todas as possibilidades do quadro, da musica, do tempo, do silencio, da emoção. Faz cinema em estado puro. Quase todos os filmes passarão. O Cavalo de Turim vai ser lembrado pelos que virão depois como hoje lembramos de Morangos Silvestres - só para ficar em um dos homenageados desse Festival.

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MAYA DEREN ESTÁ VIVA 15/02/2011



Os mais importantes movimentos de vanguarda no cinema não teriam existido sem Maya Deren. Os grandes realizadores do final dos anos 60, todo o cinema percepcionista, nomes como Brakhage, Frampton, Snow, todos tiveram a inspiração de Maya Deren. Pode-se dizer que Mashes of the afternoon inaugurou o cinema da transgressão estética, a busca pela pura expressão. O que era conhecido – e continua sendo – pela ideia de experimentalismo. Mashes foi feito em 1943, quando também começou o hoje folclórico desafio de Deren ao veneno, com que, segundo ela, Hollywood contaminava o cinema norte-americano.



As formas de expressão vanguardistas mudaram muito, o termo se desfigurou, perdeu o que lhe dava sentido desde as vanguardas dos anos 30, e as formas contemporâneas de expressão audiovisual construíram um universo muito distinto. Não há mais fotogramas, não há mais a textura sobre a qual Maya trabalhava.



Esse universo reaparece num lindo documentário que a americana Barbara Hammer lhe dedica, Maya Deren’s Sink, exibido na mostra Panorama, no Festival de Berlim. O filme, um média metragem com pouco mais de meia hora, tem como ponto de partida, como o nome indica, uma pia que teria pertencido a Deren. Através da pia, Barbara vai desvendando o universo da sua biografada, que morreu em 1961, com pouco mais de 40 anos.



Barbara faz seu filme como Maya gostaria de faze-lo. É reverencial, mas criativa. Traz muitos de seus filmes dos anos 40, as opiniões omitidas sobre eles na época e um senso critico admirável do movimento vanguardista. Com o distanciamento imposto pelo tempo, seu filme promove e ratifica a aventura de Maya Deren, seus princípios, sua participação decisiva para tornar possível a obra de artistas excepcionais que viam algo além das narrativas lineares, a influencia evidente sobre como nos acostumamos hoje a desconstruir a imagem, a encontrar nela o que simplesmente não era perceptível. O que Deren fez por Hollywood foi bem mais do que insultá-lo.

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DIZER, OU NÃO DIZER NADA 14/02/2011



Acho que foi no início dos anos 80, não tenho certeza. Vi no Festival de Gramado um curta-metragem em 16mm. Chamava-se Zero a Zero. Eram dois personagens, um casal jovem na praia, vistos apenas da cintura para baixo. O dialogo era mais ou menos assim: “Oi”. “Tudo bem?”. “E ai?”. “Falou”. “Podes crer”. A menina e o rapaz não tinham nada a falar. Por isso, não aconteceu nada entre eles. Ficou no zero a zero.



O diretor era um garoto chamado João Emmanuel Carneiro. Mais tarde, virou roteirista de filmes como Central do Brasil e autor de novelas na Globo. João saiu do zero a zero porque tinha o que falar.



Não e de João que quero falar, mas de Paula Markovitch. É a mexicana que escreveu Lake Tahoe, um grande filme dirigido por Fernando Eimbcke, justamente sobre alguns personagens que não tem muito o que falar.



Paula dirigiu agora seu primeiro filme, O Premio, apresentado na competicão em Berlim. O Premio é mexicano, mas é todo passado na Argentina. Os personagens são argentinos, a questão é argentina.



Os personagens são uma mãe, e sua filha, de 8 anos. A questão é a ditadura militar no pais. Mãe e filha estão escondidas num pequeno vilarejo costeiro. Estão escondidas porque o exército parece ter capturado o pai e possivelmente vai atrás do resto da família. A garota não sabe bem o que esta passando, mas é especialmente inteligente. Foi escolhida pela professora para ser a oradora da turma, e dedurada por outra menina porque, na prova, deu cola a um colega.



Um soldado aparece na escola, anunciando um concurso entre as crianças. Elas devem escrever um pequeno ensaio sobre as Forças Armadas. O que a menina escreve, e entrega à professora, vai parar nas mãos da mãe. O exército, segundo a menina acuada, é mau e matou seus familiares. A mãe consegue permissão da professora para que a menina mude o texto, que passa a ser laudatório. Ela ganha com isso o primeiro premio, que será entregue numa solenidade do exercito, em Buenos Aires. Instala-se o conflito entre mãe e filha, entre a farsa e os limites da hipocrisia.



Paula Markovitch cria as situações com talento, e trabalha a narrativa de maneira especial, valorizando a ausência de dialogo entre mãe e filha reclusas, o tempo que não parece querer passar. Um belo filme, que se insinua a terminar varias vezes, mas que parece também não querer acabar.



Atenção: no parágrafo seguinte, em itálicos, ha informações sobre o enredo que revelam alguns elementos do desfecho do filme. Quem preferir, deve passar ao parágrafo seguinte



Até que no último momento, justamente no plano derradeiro, acontece o inesperado. A volta do pai promove um happy end que contradiz tudo o que O Premio parecia dizer ate então.



Como a filha de sua personagem, Paula reescreve sua própria história, para torna-la mais agradável a quem tiver que lê-la, para torná-la palatável e bizarra. Paula, como a menina, talvez tivesse o que dizer. Acaba dizendo o contrario. Seria melhor não ter dito nada.

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SYLVESTER CORIOLANUS 14/02/2011



Antes de se tornar uma celebridade em Hollywood, Ralph Fiennes foi um ator shakespeariano. Mas, como insinuava Nelson Rodrigues, a falta de inteligência deveria ser vista como uma virtude no teatro. Nelson dizia isso para Zé Celso – "seja burro!", para que o diretor não ousasse interferir no seu texto.



Fiennes estréia como diretor no filme inglês em competição em Berlim: Coriolanus, o épico de Shakespeare sobre o general Caio Martius, que desdenhava dos plebeus romanos no sec. 4 AC e, por causa disso, foi deposto na praça muito antes do Twitter.



Shakespeare escreveu "Coriolanus" em 1607. Fiennes transpõe e ação para o tempo atual. E em Roma, o que é completamente inexplicável. Há dois mil e quatrocentos anos, Roma era o centro do mundo. Hoje é uma cidade da Itália – uma bela cidade, cuja importância para o cenário político mundial, no entanto, rivaliza com Nova Iguaçu.



Ao escolher o mundo contemporâneo, Fiennes troca as espadas por mísseis mas mantém o texto original. Impõe ao filme, ainda assim, um tom realista – o que o torna inaceitável para qualquer espectador. Reduz Shakespeare a um filme de ação convencional, com todas as explosões de praxe. Faz sentir saudades de Kenneth Brannagh – lorota que jamais imaginei que a vida pudesse me reservar.

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O SHOW DA VIDA: The Queen has no crown , 14/02/2011 exclusivo para este site



O que mudou o mundo foram as redes sociais e, antes delas, os blogs. Nem uma bigorna duvida disso. Mas se você abrir agora o seu Facebook, vai ver um post sobre o pôr-do-sol, outro sobre a festa de formatura no sábado passado. Os mecanismos estão aí. Eles não têm culpa se as pessoas não têm nada a dizer.

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O israelense Tomer Heymann tem muito a dizer. Ele fala de suas experiências mais profundas como se estivesse contando o resultado de um jogo de futebol. Tomer tem mais coisa a dizer do que um monge budista. Está falando dele, mas de maneira extraordinariamente forte está dialogando com cada espectador, como se fosse o seu melhor amigo. É dele um dos mais fascinantes documentários exibidos esse ano em Berlim: The Queen has no Crown.



A rainha é sua mãe, cujos filhos estão deixando o lar, e o documentário é sobre sua família. Ou melhor, é sobre como Tomer olha a sua família. Melhor ainda: sobre como Tomer olha o seu mundo e vê como o mundo percebe o seu olhar.



Aos 40 anos, Tomer é um dos mais inovadores documentaristas de Israel, o país que produz hoje alguns dos melhores, mais inteligentes e controversos documentários do mundo. É um ativista de muita coisa: a liberação dos territórios ocupados por Israel; os direitos civis de várias comunidades, entre elas as de diferentes orientações sexuais.



Tomer é uma das grandes vozes dos movimentos anti-homofobia em Israel e no mundo. Isso está expresso em muitos de seus filmes exibidos em outros anos em Berlim: Paper Dolls (2004) e I Shot my Love (2010), entre eles. Mas isso é apenas o início do que ele tem para dizer.



The Quuen has no Crown é, aparentemente, um filme sobre a dissolução de uma família. Este é o seu tema principal. Pouco a pouco, os filhos de uma família de classe média em Israel vão deixando o lar para trabalhar, ou estudar, nos EUA. É um filme sobre o lar de Tomer, ou o que restou dele. Os pais, separados depois de um casamento de 33 anos, que agora nem se cumprimentam, seus irmãos e as famílias de seus irmãos.



Um dos irmãos, gêmeo de Tomer, tem o mesmo nome de seu namorado. É uma situação embaraçosa e divertida, é um dos muitos problemas cotidianos com que tem que lidar. Outro irmão desafia permanentemente o oficio de fazer filmes, que considera uma coisa menor, uma atividade inútil. Atira, particularmente, sobre o método utilizado por seu irmão para fazer esse filme.



Pois seu método é o seguinte: por mais de 10 anos, Tomer não largou nem por um segundo a sua câmera portátil. Documentou tudo o que acontecia ao seu redor. Os encontros e desencontros com a mãe e o pai, as partidas de seus irmãos para sempre, o encolhimento da família, a solidão de sua mãe, o seu flerte e depois o tórrido namoro, a sua grande paixão - e a separação indesejada. Não deixou de fora nem os garotos de programa com quem esteve depois que foi largado pelo namorado.



E, no entanto, ao contrário do que tudo parecia indicar, não é Tomer o foco de seu filme. Ou por outra: The Queen hás no Crown fala dele o tempo todo, e na primeira pessoa. Mas está falando mesmo é sobre o mundo que está ao seu redor. Sobre o seu país. Sobre a sua sexualidade e os entraves a essa expressão. Sobre paixões e razões para viver. Sobre a inserção de cada um no seu núcleo familiar. A constatação relevante é que quem habita esse mundo somos nós.



Há um vetor político nas proposições de Tomer: discutir como o governo de Israel está tratando a sua gente, pensar por que tantas famílias, descendentes de sionistas e sionistas elas próprias, têm deixado o país. O foco para isso está em sua mãe. Nesses dez anos ou mais, Tomer captou todas as suas reações à partida dos filhos, às revelações de Tomer, aos seguidos jantares de Pessach, cada vez menores e menos animados. A mãe subiu ao palco com ele na primeira exibição do filme em Berlim.



O outro vetor está na maneira pela qual Tomer simplesmente surfa pela vida. Ele tem um papel político a cumprir, mas, sobretudo, uma experiência humanista a compartilhar. Na maior parte do filme, Tomer é profundamente feliz. Não se pode dizer a mesma coisa de muitos outros personagens. É difícil imaginar que haja alguma culpa a ser contabilizada pelo simples fato de Tomer viver bem a sua vida, a sua opção política, a sua orientação sexual.



A contemporaneidade de The Queen has no Crown deriva justamente dessa atitude. Não há nada no filme que não seja real (na medida em que nada foi encenado e nem sequer preparado como depoimentos formais), ou que não seja verdadeiro (ainda que seu irmão não ache isso e o classifique de “manipulativo, com essa camerazinha de merda”).



Não tenho certeza que seja uma camerazinha de merda, mas estou seguro quanto aos limites da manipulação. Esse é um filme menos manipulativo do que um único acorde musical numa comédia romântica. Um filme sobre emoção, verdade, e nada mais. Herzog fez um documentário falando uma hora e meia de mentiras, com uma câmera em 3D. Tomer, com “uma camerazinha de merda”, faz um documentário falando uma hora e meia de verdades. -

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PRIMITIVOS E SUBDESENVOLVIDOS, 13/02/2011 para este site



É difícil saber com precisão quanto tempo levará para que o novo e aguardado filme de Werner Herzog, Cave of Forgotten Dreams, seja reconhecido como uma das grandes fraudes do cinema contemporâneo. O “documentário” em 3D, exibido poucas horas depois do extraordinário Pina, de Wim Wenders, no Festival de Berlim, trata de gravuras pré-históricas supostamente encontradas em 1974 nas cavernas de Chauvet, no sul da Franca. As gravuras teriam cerca de 30 mil anos, o que, garante Herzog, é o dobro dos mais antigos desenhos do homem conhecidos até agora.



A equipe de Herzog ganhou acesso exclusivo ao local. É uma bela caverna, para quem gosta, cheia de estalactites impressionantes. Herzog passeia em torno delas para contar uma história que beira a alucinação. O que faz não é documentário. É pura ficção – e ficção ruim.



Acho que ninguém, algum dia, saberá o grau de envolvimento do History Channel nessa brincadeira. O History Channel, que produz o filme, contabiliza, junto com o rival Discovery Channel, muito do que de pior se produz para TV por assinatura no mundo inteiro. Canais assim sepultam a possibilidade de documentários criativos, mas nunca me ocorreu o envolvimento em fraudes dessa natureza.



Acredito que tudo seja parte de uma mirabolante história a ser desvendada por Herzog nos próximos anos. Se for assim, Herzog terá cumprido sua parte com correção. A maneira como narra o seu filme, com o convencionalismo e a aridez de canais dessa natureza, não poderia ser mais artificial, auto-indulgente e estúpida. Tudo como manda o cardápio. Parece que estamos vendo um lixo do Discovery ou do History Channel. Aliás, estamos vendo um lixo do History.



A narração é constrangedora, os depoimentos são toscos e a forma... bem, gostaria no mínimo que alguém explicasse o que faz uma câmera de 3D em corredores de alguns centímetros de largura, iluminados pela luz de algumas lanternas, e num filme feito para a televisão.



Herzog compara gravuras seriais de cavalos a fotogramas de filmes e, quando promove uma analogia com Fred Astaire dançando com a própria sombra, insulta ao mesmo tempo a arte cinematográfica, a inteligência do espectador contemporâneo, e os nossos ancestrais de 30 mil anos – que, por sinal, jamais desenharam cavalo algum, muito menos em série - e menos ainda em movimento.



Há 11 anos, convidado pelo então banqueiro Edemar Cid Ferreira, tive a chance de realizar um documentário sobre a arte rupestre brasileira. Nunca tinha me interessado por tal coisa, mas vi o enorme trabalho desenvolvido por arqueólogos trabalhando em cavernas remotas pra lá do Piauí. Uma década depois, Edemar não é mais banqueiro, continuo não me interessando por arte rupestre, mas o Piauí continua o mesmo e as gravuras de 10 mil anos não devem ter mudado muito de aspecto. Vi o que os primitivos fizeram no Brasil pré-Cabraliano e vi agora o que Herzog garante que os primitivos franceses fizeram antes de de Gaulle. Ou o diretor de Fitzcarraldo preparou mais uma brincadeira, ou somos subdesenvolvidos há muito mais tempo do que eu pensava.

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WENDERS SOBRE PINA BAUSCH: PARA QUE SERVE O 3D, 12/02/2011 para o criticos.com.br



Wim Wenders mostrou em Berlim para que serve o 3D. Pina, seu filme sobre a obra de Pina Bausch, teve sua premiere mundial no dia 13 de fevereiro, no mesmo dia em que o festival exibia outro filme em 3D de outro grande cineasta alemao: The Cave of Forgotten Dreams, de Werner Herzog.



Nao consigo lembrar de produção anterior tão bem sucedida em 3D, nem mesmo – e muito menos – Avatar.



Pina é uma obra modelada a amor e entusiasmo - não a efeitos especiais. Os efeitos sao as impressionantes criações de Pina, aqui retratadas com o mesmo rigor e perfeição com que Pina trabalhava.



Pina Bausch morreu de câncer há pouco mais de um ano. Desde os anos 1970, propunha uma coreografia renovadora, onde as experiencias pessoais de seus dancarinos eram parte integrante da criação. Arquitetou pelo menos uma coreografia – “Águas” – decorrente de uma viagem ao Brasil. Trabalhou com cineastas como Fellini (E la nave va) e Almodovar (Fale com ela), mas a grandeza de seu trabalho se fixava nos palcos. Pina Bausch era irredutivel a qualquer outra forma de expressao.



Wenders recria as coreografias de Pina Bausch com a sua companhia – e deixa os dançarinos se expressarem sobre ela. Na estrutura, é um documentário, ou melhor, um musical, de incrível simplicidade. Na prática, é uma obra tao complexa quanto as extraorinarias coreografias sobre as quais discorre. Um foco na maestria individual de cada artista e uma homenagem ao que eles sao capazes de fazer em conjunto.



Desde Buena Vista Social Club, há mais de dez anos, Wenders nao fazia um filme tao bom. A vantagem de Pina sobre Buena Vista está na extensao dos limites do trabalho que está sendo retratado. Wenders é emocionantemente humilde em relação a isso. É como se, como diretor, estivesse ausente do seu próprio filme, como se Pina Bausch, e nao ele, estivesse atrás das câmeras. É isso que permite que Pina seja capaz de fazer o que parecia impossivel: trazer ao cinema a grandeza da obra de Pina Bausch.

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