Texto publicado anteriormente durante o Festival de Cannes, em 12/05/2011
Não tem mistério. Meia-Noite em Paris, o mais recente Woody Allen que abriu o 64º Festival de Cannes, é um filme autorreferencial. E por isso é bom, muito bom. Imaginem uma criativa mistura de Manhattan com A Rosa Púrpura do Cairo, um banho de sofisticação do hotel Le Bristol com um toque do mais legítimo bas-fond do Quartier Latin . Resultado? Meia-noite em Paris.
Como em Manhattan, Allen abre o filme com um prólogo de arrepiar. São imagens de recantos de Paris, sob o sol, sob a chuva, embaladas pela dolente Si tu vois ma mère , de Sidney Bechet. Uma sequência que já tem seu lugar na história do cinema. “Paris é uma Nova Iorque mais bela”, disse em entrevista ao Le Figaro. Talvez por isso tenha escolhido Darius Khondji, o mesmo de A Praia, para fotografar a cidade num reluzente colorido, ao contrário do preto e branco de Manhattan.
A trama pode ser resumida como um conto de fadas para intelectuais, uma assumida farsa. Às vésperas de seu casamento, Gil (Owen Wilson à la Allen) viaja com a noiva Inez (Rachel McAdams, nova deusa na lista do diretor) e os prováveis sogros para Paris. Gil é um roteirista bem-sucedido mas insatisfeito com sua produção lowbrow. Seu sonho é escrever um livro de sucesso . Viaja em busca de inspiração.
Os planos começam a naufragar quando ele a noiva encontram um casal de amigos americanos: Paul (Michael Sheen), um intelectual francófilo afetadíssimo, e a mulher. Paul seduz Inez com seus conhecimentos sobre arte, literatura e enologia. Gil acaba solitário na noite parisiense. Como em qualquer conto de fadas, as badaladas da meia-noite transformam o real em magia. E, sem maiores explicações, Gil é transportado para os anos 20, cercado de gente como Zelda e Scott Fitzgerald, Cole Porter, Ernest Hemingway e Picasso.
O inusitado encontro rende anedotas típicas de Woody Allen, como o momento em que Gil sugere a ideia de um filme, O Anjo Exterminador, a ninguém menos que Luís Buñuel. O elenco compra a brincadeira e torna tudo mais fácil com caracterizações impagáveis, como o Salvador Dalí de Adrien Brody ou a Gertrude Stein de Kathy Bates. A nota destoante é uma apagada Carla Bruni, no papel de guia do Museu Rodin.
Woody Allen traça caricaturas sem deixar que o filme seja apenas caricatural. Há alfinetadas no conservadorismo americano, concentradas nos diálogos entre Gil e o sogro, críticas ao exibicionismo intelectual e mais uma digressão, à feição do autor, sobre a nostalgia e as interseções entre o tempo passado, presente e futuro. Tudo com humor refinado e muito romance. Só Woody Allen poderia manusear clichês da intelectualidade parisiense sem ser destroçado pela crítica francesa. Ele pode.
A paixão do cineasta por Paris é antiga. Em 1964, Allen hospedou-se durante oito meses no suntuoso George V para escrever aquele que ele mesmo considera um dos seus piores roteiros: “What´s New Pussycat?”. O fracasso no trabalho não impediu que nascesse ali uma relação de afeto com a cidade que só aumentaria com a acolhida obtida por seus filmes ao longo da carreira.
Em Meia-Noite em Paris, Allen encontrou uma forma de retribuir esse amor prestando uma homenagem à Paris de hoje e de sempre. Garantiu assento perpétuo, e merecido, no coração dos franceses. E dos francófilos, bien sûr !
# MEIA NOITE EM PARIS (MIDNIGHT IN PARIS.)
EUA, Espanha, 2011
Direção e Roteiro: WOODY ALLEN
Fotografia: DARIUS KHONDJI, JOHANNE DEBAS
Edição: ALISA LEPSELTER
Direção de Arte: ANNE SEIBEL
Elenco: OWEN WILSON, RACHEL McADAMS, MARION COTILLARD, KATHY BATES, ADRIEN BRODY, MICHAEL SHEEN
Duração: 100 minutos
Site oficial: http://www.sonyclassics.com/midnightinparis