Quando da publicação de sua retrospectiva dos melhores do cinema mundial em 2002, o seminário nova-iorquino Village Voice publicou, além de listas individuais, algumas opiniões de parte dos críticos votantes. Um deles cunhou sobre o ano passado uma daquelas típicas frases de efeito, tão rocambolescas quanto instigantes, tão questionáveis em seu significado quanto saborosas como boutade. Ei-la: “O ano de 2002 que teve Steven Spielberg ao lançar Minority Report – A Nova Lei e Prenda-me se for capaz, equivale em termos de qualidade e importância para o cinema comercial, ao ano de 67 para o cinema de arte, quando Jean-Luc Godard lançou Duas ou três coisas que eu sei sobre ela e A Chinesa” (bem, na verdade ele lançou mais filmes naquele ano). A frase é um evidente exagero já que sucedendo as (mal compreendidas por alguns) obras-primas A.I. – Inteligência Artificial e Minority Report (onde as questões iniciais partiam de temas ligados à tecnologia e maquinário e seus tratamentos tão livres quanto fortes e cheios de nuances acabavam tendo alto alcance humanista e até metafísico), Prenda-me se for capaz é “apenas” ótimo.
A trama se baseia na história real do ex-criminoso Frank Abagnale Jr. (Leonardo Di Caprio, correto, poderia render muito mais), garoto recém-saído da adolescência, que a partir de seus 18 anos, e em boa parte dos anos 60, foi perseguido pelo FBI (agente Carl Hanratty, vivido com estudado tom desajeitado e simpatia por Tom Hanks) por cometer fraudes bancárias falsificando cheques em várias partes dos EUA. Para realizar seus golpes, ele assumiu falsas identidades de piloto de avião, médico e advogado, sendo que qual das duas atividades comandava a outra, o filme não procura esclarecer, deixa no ar a idéia que elas eram interdependentes e de mesmo valor para o rapaz, e ainda bem, a trama não embarca na esparrela imbecilizante do banditismo romântico.
O que interessa é que Prenda-me prossegue a, por assim dizer, síntese dialética intuitiva dos dois trabalhos predecessores: a de unir o Spielberg da Fantasia Infanto- Juvenil, que se tornou um dos diretores de cinema mais populares do mundo (Tubarão, Contatos imediatos do Terceiro Grau, E.T., a série Indiana Jones, etc) com o Spielberg da Seriedade Adulta (A lista de Schindler, Amistad, O Resgate do Soldado Ryan, etc), sendo que, grande parodoxo, o gênio vem muito mais do primeiro (que construía complexidades como nas mais relevantes e profundas fábulas), do que do segundo, em que o valor vem sobretudo do conteúdo social relevante (e no qual o tratamento de idéias é algo preguiçoso e muito mais acomodado na facilidade da importância sem muita densidade, já que os temas do Holocausto, Segunda Guerra, etc, recebem tratamentos bem menos sagazes e de discussão pertinente que a enunciação solene deles faz crer à primeira vista).
Prenda-me se for capaz é uma divertida aventura/comédia dramática trazendo o jocoso conflito de gato-e-rato entre o guri e o cara do FBI, mas também e sem nenhum verniz de “profundidade” artificial, é um filme triste sobre um garoto que para crescer, vira um parasita, procura a afirmação pela farsa, o jogo de aparências como inserção no mundo, numa tentativa torta de se enquadrar, de pertencer ao sistema, que passa por burlá-lo, ironicamente, forjando desempenhos em profissões muito bem vistas pela sociedade. Em termos de filiação parental, A.I. trazia a busca pela Mãe num intenso e chocante Édipo cibernético e Minority Report (entre muitos outros temas) mostrava a derrocada existencial que um homem sentia ao falhar nos cuidados paternais (e aí a natureza da atividade policial do personagem de Tom Cruise provocava nele um conflito íntimo sensacional). Além disso, as duas obras também traziam a idéia de (re) construção da identidade pessoal, tema prolongado e aperfeiçoado neste filme mais recente - vale assinalar que Spielberg usou apenas a base inicial do projeto de A.I. herdado de Stanley Kubrick, e, raridade em sua carreira, escreveu ele mesmo o roteiro, aliás de concepção bem pessoal.
Prenda-me se for capaz também continua um mote da carreira do diretor que é a busca do Pai (tanto na relação entre Frank Jr. e seu pai, Frank Sr., como de maneira suave entre o fugitivo agente do FBI; e tal tema surge de problemas familiares pessoais do diretor, segundo ele mesmo declarou antes) e perverte, ou melhor, inverte outro, a síndrome de Peter Pan (o menino que se recusa a crescer, acusação que pesou contra o diretor algumas vezes), ao mostrar o desespero de Frank que tenta crescer (como homem e ser social) de qualquer maneira, numa inconsequência moral. A partir da segunda metade dos anos 80, esses dois temas de certa forma levaram Spielberg, para muitos e ao lado do amigo de geração George Lucas o pai do moderno estilo de superprodução hollywoodiana, a ingressar, primeiro aos poucos depois com toda a força, na sua etapa sériacomo artista. Ele talvez tenha feito isso não para provar (deliberadamente) algo para o grande público (que também uma noção meio empolada de profundidade), a cinefilia erudita, os críticos, colegas de profissão, ou, sobretudo, os mais diversos setores da indústria de cinema, que ainda precisariam que ele realizasse certo tipo de obra para considerá-lo um artista (e para premiá-lo com um Oscar); mas muito por um desejo íntimo dele mesmo, demonstrado em algumas entrevistas (em outras, mais diretas, ele mesmo se acusava de Peter Panice). Essas próprias obras adultas transpareciam / transparecem isso por terem uma certa angústia discursiva peculiar, uma vontade de ser entendido por se estar fazendo uma declaração sobre e para o mundo do tipo “olha, estou falando coisas sérias e importantes”, que parece não só dirigida aos outros como igualmente um grito interno de afirmação de melhora na auto-estima intelectual. Note-se que aqui não há espaço para discutir culpas e méritos do cineasta na construção direta e/ou indireta da moderna Hollywood, assuntos que trazem questões bem mais complicadas do que parecem, já que por exemplo, em relação ao que seus filmes têm de valores de produção, Spielberg é, acreditem, um diretor que filma de forma mais econômica (de verdade) do que outros diretores responsáveis por superproduções atuais.
Este novo filme só não é perfeito por não ter o eixo do foco narrativo tão preciso como em A.I. e Minority Report (que até valorizava alguns questionáveis golpes teatrais do roteiro) e às vezes perder um pouco o fôlego de enlevo. Mas, fato raro, quase inédito na carreira do diretor, traz uma seqüência que pouco ou nada acrescenta à narração em termos práticos, de desenvolvimento de plot, e neste caso, não só não contribui para a já citada dispersão de foco narrativo (e sim algumas cenas e seqüências sem garra) como é notável em termos de adensamento da psicologia e da vivência dos dois personagens (a vida excitante falseada de um, a carência de acontecimentos relevantes para o outro), além de traduzir com sua excelência em suas imagens todo o artesanato narrativo de Spielberg neste filme, que traz a empolgação de uma bela aventura mas com uma tristeza de fundo. Ela traz duas cenas que se alternam em montagem paralela, uma em que Frank Jr. seduz / é seduzido por uma linda garota (Jennifer Garner, do seriado Alias) que se revela bem diferente da princesinha que seu passado de ex-capa de revista juvenil fazia crer (e aí essa parte se insere na questão do jogo de aparências na vida de nosso anti-herói), e a outra trazendo o agente Carl num ato banal de sua vidinha modorrenta, perdido em meio à uma confusa troca de roupas quando vai à uma lavanderia pública. Sem nada de antologia à primeira vista, pois não traz frases inteligentes, super-atuações ou planos embasbacantes, essa sequência é ainda um notável momento de inconsciente (e por isso não autêntico, ainda que bem-vindo) Deus ex machina do diretor, pois ele elucida coisas sobre seus personagens sem que os próprios se dêem conta disso (ao menos nada a seguir na trama nos dá essa noção), do como aquele instante parece que os define, e a percepção de tudo só chega ao espectador mais atento que observe a sequência com cuidado.
Melhor de tudo: tal como em todo o filme, Spielberg parece ter feito as coisas na pura base instintiva, na sugestão cativante. Fica a constatação de que livre da obrigação pessoal de raciocinar de maneira muito formal (nos casos em questão, no pior sentido da palavra), o cineasta acaba pensando em Prenda-me se for capaz, e também em A.I. e Minority Report, de maneira muito mais informal (nos três casos recentes, no melhor sentido da palavra) e inteligente do que, por exemplo, em Ryan, já que à egolatria técnica hiper-realista dos 25 minutos iniciais desse filme, sucediam duas horas e tanto de clichês enrustidos de fitas de guerra, enrustidos por não se assumirem como tal e quererem passar por visão nova sobre o gênero.
Chamam ainda a atenção em Prenda-me se for capaz, a delicada atuação de Christopher Walken como Frank Sr. (indicada ao Oscar de coadjuvante) e o trabalho da direção de arte e dos figurinos, ambos excepcionais (injustamente não indicados para o Oscar) não só meramente ilustrativos, belos, e tão bem coordenados com o relato como um todo que sugerem boas idéias.
Essas duas áreas recriam a beleza e o glamour dos anos 60 (ainda bem contaminados pela estética dos 50, sem falar que a informalidade da contracultura só se fez muito mais presente na estética mundial anos 70 afora), e do comportamento social da época, não apenas pelo lado “ingênuo” e saudosista num aspecto superficial, porém também estimulando a idéia de que essa coisas funcionariam como uma redoma de proteção. Só que não num sentido cínico e segundo ideários rebeldes, apenas anti-libertário e repressor, mas (por que não?) como um resguardo externo das fragilidades entranhadas dos personagens em questão, válido até como uma espécie estranha de manutenção da saúde emocional das pessoas, impedindo o colapso delas, a explosão desordenada de sentimentos desarticulados -vide a personagem Brenda-, e menos do que causa mesma desses desajustes como pode pensar alguns (aí a questão da sociedade de aparências entra numa forma menos condenatória e mais multifacetada).
Ao mesmo tempo (e não separadamente) popular e sofisticado, despretensioso e inteligente, Prenda-me se for capaz é a confirmação do momento formidável que vive Steven Spielberg em sua carreira. Como ele continua divertindo a platéia como poucos, você pode desligar o cérebro e passar os 141 minutos da narração apenas desfrutando o prazer puro do filme (o que não deixa de ser bom). Fazendo isso, infelizmente, deixará de observar lados interessantes de um artista que está com saldo muito positivo no trato e aperfeiçoamento das variantes de tudo que já praticou. E que assinou mais um grande filme.
# PRENDA-ME SE FOR CAPAZ (CATCH ME IF YOU CAN)
EUA, 2002
Direção: STEVEN SPIELBERG
Roteiro: JEFF NATHANSON
Produção: STEVEN SPIELBERG E WALTER F. PARKES
Fotografia: JANUSZ KAMINSKI
Montagem: MICHAEL KAHN
Música: JOHN WILLIAMS
Elenco: LEONARDO DICAPRIO, TOM HANKS, CHRISTOPHER WALKEN, MARTIN SHEEN, NATHALIE BAYE, AMY ADAMS, JENNIFER GARNER
Duração: 141 min.
site: http://www.dreamworks.com/catchthem
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