Especiais


FESTIVAL DE BRASÍLIA 2011

30.09.2011
Por Daniel Schenker
FESTIVAL DE BRASÍLIA 2011

CANDANGOS PARA TATA AMARAL



Tata Amaral saiu vitoriosa do Festival de Brasília com seis Candangos – cinco conferidos pelo júri oficial e um pelos críticos presentes. O prêmio de R$ 250 mil pode ajudar no destino do filme, que ainda não tem distribuição. Foi uma vitória justa. Potencializado pela ótima interpretação de Denise Fraga, Hoje expõe o confronto íntimo vivenciado por uma ex-militante política ao evocar um dilacerante relacionamento do passado.



O júri (formado por Ana Luiza Azevedo, Arnaldo Carrilho, Artur Xexéo, Hermila Guedes, Roberto Bomtempo, Toni Venturi e Vladimir Carvalho) se dividiu entre dois dos seis longas apresentados em competição: além de Hoje , Meu País , filme de André Ristum sobre a reestruturação de vínculos familiares que saiu de mãos vazias do Festival de Paulínia, ganhou seis Cangandos – quatro do júri de Brasília e mais os prêmios conferidos pelo júri popular e Vagalume.



Os demais concorrentes – O Homem que não Dormia , Trabalhar Cansa e As Hipermulheres ) ganharam um troféu cada. Apenas o documentário Vem Rifar meu Coração saiu sem qualquer Candango. Entre os curtas-metragens venceu o sensível L , de Thaís Fujinaga, abordagem dura do sofrimento de uma menina que sente vergonha do tamanho dos seus pés.



A cerimônia de premiação foi marcada por protestos em relação ao desprestígio da Mostra Brasília, cujos filmes tiveram exibição no meio da tarde e fora do Cine Brasília, ao aumento no valor do prêmio de melhor longa-metragem (que implicou em redução nas demais categorias) e à construção do bairro Setor Noroeste, onde mora uma comunidade indígena, tema do filme Sagrada Terra Especulada – A Luta Contra o Setor Noroeste .



LONGA-METRAGEM



Filme - Hoje

Direção - André Ristum ( Meu País )

Ator - Rodrigo Santoro ( Meu País )

Atriz - Denise Fraga ( Hoje )

Ator coadjuvante - Ramon Vane ( O Homem que Não Dormia )

Atriz coadjuvante - Gilda Nomacce ( Trabalhar Cansa )

Roteiro - Jean-Claude Bernardet, Rubens Rewald, Filipe Sholl ( Hoje )

Fotografia - Jacob Solitrenick ( Hoje )

Direção de Arte - Vera Hamburger ( Hoje )

Trilha Sonora - Patrick de Jongh ( Meu País )

Som - Mahajugi Kuikuro, Munai Kuikuro e Takumã Kuikuro ( As Hiper Mulheres )

Montagem – Paulo Sacramento ( Meu País )

Prêmio da Crítica - Hoje

Prêmio Vagalume - Meu País

Júri Popular - Meu País



CURTA-METRAGEM



Filme - L

Direção - Thaís Fujinaga ( L )

Ator - Horácio Camandulle ( De Lá Pra Cá )

Atriz - Eloína Duvoisin ( A Fábrica )

Roteiro - Ali Muritiba ( A Fábrica )

Fotografia - André Miranda ( Imperfeito )

Direção de Arte - Raquel Rocha ( Premonição )

Trilha Sonora - Ilya São Paulo ( Ser Tão Cinzento )

Som - Kiko Ferraz ( De Lá Pra Cá” )

Montagem - Wallace Nogueira e Henrique Dantas ( Ser Tão Cinzento )

Prêmio da Crítica - L

Prêmio Marco Antônio Guimarães - Ser Tão Cinzento

Prêmio Aquisição Canal Brasil - Ser tão Cinzento

Prêmio Vagalume (curta) - Imperfeito

Prêmio Vagalume (animação) - Menina da Chuva

Júri Popular (curta) - A Fábrica

Júri Popular (animação) – Raí Sossaith





LONGAS EM COMPETIÇÃO: VOU RIFAR MEU CORAÇÃO



“Cada música que o cantor brega compôs relata o que aconteceu na vida dele”, exclamam, em determinado momento do documentário Vou Rifar meu Coração . As músicas, de fato, evidenciam o que o compositor sente. As letras são literais. Não há preocupação com refinamento. Mas suscitam identificação imediata em muitos ouvintes. Por isto, a diretora Ana Rieper não se limita a colher depoimentos de artistas. Entrevista também os fãs de música popular, pertencentes às classes sociais menos abastadas (como os próprios cantores), que contam sobre suas vidas.



Sem perder de vista o potencial do filão, os artistas buscam a expressão sincera. Cantam munidos de sentido de verdade. Wando, por exemplo, chora ao entoar uma música. O valor artístico é questionável. E a questão do eventual preconceito em relação ao artista popular (a classificação de brega é vista como problemática) ganha destaque. Outros descompassos vêm à tona. Basta dizer que algumas histórias reveladas na tela têm inegável potencial cômico, ainda que sejam dilacerantes para quem viveu. O maior exemplo é a história do homem que mantém relacionamento aberto com duas mulheres. Enquanto ele narra o caso como um feito divertido, as mulheres revelam lidar com a experiência com considerável dose de sofrimento.



Ana Rieper mergulha nesse mundo evitando estabelecer julgamentos. Inevitavelmente, flerta com o universo suburbano. Viaja pelo interior do Brasil e registra videokês e ambientes com flores de plástico. Numa cidadezinha, um homem anda de bicicleta com microfone acoplado. Há outras cenas ótimas, como a do cover de Amado Batista num circo do interior. Mas Vou Rifar meu Coração não termina sem uma nota polêmica: a presença, entre os entrevistados, de Lindomar Castilho, que assassinou a ex-mulher há exatos 30 anos.





QUINTO PROGRAMA DE CURTAS EM COMPETIÇÃO



Sambatown, de Cadu Macedo

A arquitetura antiga da cidade e do ambiente de uma barbearia constitui o charme de Sambatown , curta de animação de Cadu Macedo que traz à tona a atmosfera da malandragem através da disputa entre dois personagens pela mesma mulher. Há inegáveis cuidados (a reprodução do tempo ocioso dos homens, o divertido recurso das estampas no vestido da mulher) que, porém, não são suficientes para evitar certa sensação de vazio após o término do filme.



Menina da Chuva, de Rosaria

Menina da Chuva , curta assinado por Rosaria, confronta o espectador com uma abordagem dramática da solidão através de flashes do cotidiano de uma menina que não consegue se integrar nos grupos. Não parece haver acesso possível nas tentativas de estabelecer contato com pequenos coletivos. A língua falada, não por acaso, é ininteligível. O curta-metragem também surpreende pelo uso de tonalidades intensas, destinando a cada personagem uma cor específica. Trata-se de um dos destaques da seleção de animação apresentada no Festival de Brasília.



Sobre o Menino do Rio, de Felipe Joffily

O título do curta-metragem de Felipe Joffily remete inevitavelmente a Menino do Rio , filme de Antonio Calmon, representativo da juventude que se tornou conhecida como geração saúde nos anos 80. Mas Joffily lança uma espécie de provocação ao investir num tratamento estético contrastante em relação ao visual ensolarado da produção de décadas atrás. Filmado em preto e branco, Sobre o Menino do Rio reúne dois desconhecidos (interpretados por Silvia Buarque e Sergio Malheiros em adequado registro naturalista) numa tarde enevoada na Praia de Ipanema e traz à tona uma triste história de amor e morte.



Imperfeito, de Gui Campos

Gui Campos aborda, em Imperfeito , o reencontro de Isa e Nando, casal no passado, num aeroporto. Mergulhado em melancolia, ele parece bem mais abalado pelo fim do relacionamento do que ela, que, porém, não suaviza na escolha da leitura – a trágica jornada familiar descortinada por Raduan Nassar em Lavoura Arcaica . O curta transita entre a evocação da intimidade vivenciada (em imagens de vídeo caseiro) e a fantasia em torno de uma eventual retomada do relacionamento. O diretor parece ter conduzido os atores para um registro interpretativo excessivamente ralentado, o que esgarça os diálogos do curta e prejudica o resultado.





LONGAS EM COMPETIÇÃO: O HOMEM QUE NÃO DORMIA



Uma das principais restrições ao cinema brasileiro da pós-Retomada – designação referente à produção posterior ao período Collor – diz respeito à assepsia de muitos filmes, consequência, em parte, da determinação de vários diretores de trazerem os espectadores de volta para as salas de cinema. A ressalva faz sentido e alguns cineastas, como Edgard Navarro e Claudio Assis (que se lançaram no terreno do longa-metragem nos anos 2000), caminham na contramão dessa tendência.



O Homem que Não Dormia , segundo longa de Navarro (depois do memorialista Eu me Lembro , de inegável inspiração felliniana, vencedor do Festival de Brasília), confirma essa disposição em não negociar com o gosto médio e com padrões estéticos. O diretor do louvado Superoutro descortina o mundo arcaico de um vilarejo, tomado por personagens primitivos, messiânicos ou em permanente estado de transe. Trata-se de um filme selvagem e catártico, no qual os personagens babam, urinam e vomitam em evidências de danação. A nudez dos corpos é registrada em close através de imagens “despudoradas”, sem maquiagem. Há uma busca pelo natural e um gosto pelo kitsch, características sintetizadas na passagem em que uma personagem, nua, pinta as unhas de amarelo, enquanto dois homens, também nus, dormem ao seu lado.



Essa naturalidade transparece ainda em certo teor documental no modo de filmar os habitantes do vilarejo, sobretudo idosos. Mas Edgard Navarro se distancia do registro realista. A estrutura não-linear nem sempre é bem resolvida, cabendo questionar a opção por evocar a “história” a partir da figura do contador diante de um grupo heterogêneo. Há, em todo caso, surpresas pelo meio do caminho, como os flagrantes de manifestações da natureza (o foco numa flor ou o desfolhar artificial de uma árvore) nesse cinema animalizado. Diretor dado a assumir suas referências, Navarro faz menção explícita ao emblemático Limite , de Mario Peixoto, através da trilha sonora.





LONGAS EM COMPETIÇÃO: HOJE



Tata Amaral perpetua em Hoje características encontradas na maior parte de seus longas-metragens anteriores, em especial no que se refere a uma articulação com o teatro – ou com características convencionadas como teatrais – através do destaque dado aos atores e ao texto e à opção por confinar a ação em praticamente uma única locação. Se em Um Céu de Estrelas e Através da Janela , as histórias eram ambientadas em casas representativas de classes sociais diversas – a Mooca no primeiro filme, o Alto da Lapa no segundo –, agora Tata fecha seus personagens num apartamento, até então desabitado, durante quase todo o tempo. Volta a trabalhar com os mesmos parceiros – Fernando Bonassi (autor do livro Prova Contrária , base da história) e Jean-Claude Bernardet (no roteiro).



A interface entre cinema e teatro, no caso de Hoje , pode ser relacionada ao entrelaçamento entre passado e presente promovido por Vera, protagonista da história, que revive o vínculo com Luiz, ex-militante político. Se por um lado Tata Amaral flerta com o teatral por meio do confinamento dos atores em espaço fechado e da intensa dialogação, por outro afirma o cinema através de projeções de documentos referentes ao período de guerrilha e dos próprios personagens nas paredes do apartamento. Enquanto o cinema é uma manifestação vinculada ao passado, que projeta um material previamente registrado, o teatro é a arte do presente, do aqui/agora, do instante imediato. E é justamente do passado – mais exatamente, de uma perda muito contundente – que a assombrada Vera, que também militou na clandestinidade, procura se libertar.



Tata Amaral estrutura o filme em dois planos distintos: num, vinculado ao passado, estão Vera (codinome Ana Maria, na época do regime militar) e Luís (codinome Carlos); no outro, fincado no presente, Vera e os trabalhadores que carregam os móveis para dentro do apartamento. Apesar de serem planos incomunicáveis, Vera não mede esforços, até certo ponto, para separá-los, como se fosse necessário despender esforço para evitar que os personagens se encontrem, ainda mais num apartamento repleto de espelhos (bastante evidenciados no filme). A conjugação entre essas esferas – uma de natureza mais subjetiva, a outra mais concreta – pode remeter a Tudo Bem , de Arnaldo Jabor. A imagem do apartamento vazio e o contexto da ditadura evocam Nunca Fomos Tão Felizes , de Murilo Salles. Mais do que pela história em si, Hoje alça voo pelo refinamento no emprego das ferramentas cinematográficas (destaque para a fotografia de Jacob Solitrenick) e pela interpretação vigorosa de Denise Fraga.

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