Depois que “Guerra ao Terror” desbancou o arrasa-quarteirão “Avatar” e conquistou o Oscar de melhor filme dois anos atrás, não dá mais para duvidar que a Academia de Hollywood venha a ter novos surtos de ousadia. Sendo assim, até mesmo um filme quase experimental como a obra-prima “A árvore da vida”, de Terrence Malick, pode sair vencedor na cerimônia do próximo dia 26. A tendência, no entanto, é que o Oscar vá para “O artista”, de Michael Hazanavicius, ou para “A invenção de Hugo Cabret”, de Martin Scorsese, recordista com 11 indicações, e que entra em cartaz amanhã no Rio.
Tanto “O Artista” quanto “Hugo Cabret” são, cada qual à sua maneira, nostálgicas e bem-sucedidas declarações de amor ao cinema. Em ambos está explícita a importância da preservação da memória cinematográfica, num claro recado às novas gerações. Hazanavicius mostra, muito mais através da forma do que do conteúdo, que, em pleno século 21, um filme mudo e em preto e branco pode ser puro entretenimento, como era para nossos ancestrais há cem anos. Já Scorsese atinge o mesmo objetivo seguindo um caminho inverso: sem abrir mão dos recursos tecnológicos modernos, inclusive fazendo uso do 3D da maneira mais eficiente que já se viu desde a “retomada” do formato, ele realizou uma aventura infanto-juvenil à moda antiga, recheada de cenas de perseguição, comédia pastelão e sentimentalismo exacerbado.
O cinema de aventura recente nunca deixou a nostalgia de lado, vide a longevitude de “Indiana Jones”, o resgate de Tintin ou os remakes de filmes como “O Aprendiz de feiticeiro”. Mas o que coloca “A invenção de Hugo Cabret” num patamar acima é a inteligência do roteiro de John Logan ao mesclar os diversos elementos dramáticos e, sobretudo, o olhar de Scorsese. Ambos, roteiro e direção, compreenderam que contar a história de um menino órfão que, escondido, controla as engrenagens do relógio da Gare de Montparnasse, é como contar a história do próprio ato da realização cinematográfica.
Quando vemos o vai-e-vem das pessoas na estação de trem sob o olhar do menino Hugo (Asa Butterfield), e a atenção dele se foca nas pequenas histórias daquele cotidiano, é como se Hugo fosse o cineasta ou o projecionista observando, incógnito, um grande ecrã de dimensões infinitas. É ele o responsável pelo bom funcionamento do imponente relógio visto de longe nas ruas de Paris. E é Scorsese, através do olhar inocente e cheio de frescor de um menino, o responsável pelo encaixe das peças na engrenagem que faz o cinema produzir tantos sonhos.
Quando os irmãos Lumière inauguraram o cinema filmando a chegada do trem à estação, as pessoas na plateia corriam de medo achando que o trem sairia da tela, como num suposto efeito tridimensional. Scorsese não só reconstituiu a cena como fez do trem um elemento importante para o uso do 3D no filme. E aí entra Georges Méliès. Ele mesmo, o mágico que se tornou cineasta, pioneiro no uso de efeitos especiais, é visto já velho (em comovente atuação de Ben Kingsley), como dono uma pequena loja de brinquedos na estação. O resgate do responsável pelo histórico “Viagem à Lua”, com direito a uma reconstituição das filmagens em 1902, é um dos momentos mais mágicos e comoventes do cinema recente. Mais uma retribuição que Scorsese, conhecido por seu valoroso trabalho de preservação de filmes clássicos e raros, dá a quem o permitiu se tornar um dos maiores cineastas vivos.
# A INVENÇÃO DE HUGO CABRET (HUGO)
EUA, 2011
Direção: MARTIN SCORSESE
Roteiro: JOHN LOGAN
Elenco: BEN KINGSLEY, ASA BUTTERFIELD, SACHA BARON COHEN, CHLOE GRACE MORETZ, JUDE LAW, EMILY MORTIMER