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O CINEMA RE-ENCANTADO

22.02.2012
Por Dinara Guimarães
O CINEMA RE-ENCANTADO

O Artista (The artist, título original), de Michel Hazanavicius (França/Bélgica 2011), marca a transição tecnológica do cinema silencioso para o cinema sonoro, de uma perspectiva particular: a do ator. É estruturado a partir de uma apropriação particular do imaginário cinéfilo hollywoodiano e dos procedimentos técnicos alojados nos arquivos do cinema silencioso, não só como fonte, mas também como sujeito. Uma obra emblemática do que pode se qualificar “cinema-arquivo”, gênero já com alguns representantes na cinematografia nacional, a exemplo de Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho e Baile Perfumado (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Sendo que O artista resgata o “fato cinematográfico”, como pura fantasia, enquanto os brasileiros recuperam o “registro filmográfico”, como verdade pura: as duas vertentes do “cinema-arquivo”.



A novidade do filme, com sua radicalidade, no sentido de ir à raiz do cinema, é reavivar o cinema como a arte por excelência da modernidade ao tratar do seu resto: o encantamento. Ao exercitar a função reflexiva no cinema e sobre o cinema, constitui-se um acontecimento cinematográfico. Dele pode-se extrair um estímulo para pensar sobre a orientação dada à sociedade em geral e ao cinema em particular que, por meio do consumismo, no âmbito especifico em consideração, tem empurrado a indústria cinematográfica para o campo de experimentos de efeitos especiais na busca da mera “novidade”. Isso que termina por ofuscar a capacidade do cinema de encantar, reduzindo sua pretensão ao mero assustar.



Assim O artista reinstala o processo sem ouvidos para os sons, ao mesmo tempo perceptivo e fantasmagórico, já que o ouvido não se contenta com o que ouve. Faz relembrar a tradição crítica que tem seu momento inaugural no “Manifesto do Som” de 1928, no Chaplin-Club, de 1928 a 1930, e com desdobramentos na obra ensaística de Alfred Hitchcock e Antonin Artaud, quanto às perdas advindas pelo sincronismo do som com a palavra e imagem, negligenciando as possibilidades que tem o “contraponto orquestral” de desencadear imagens mentais. Múltiplas perdas devidas em parte ao fato do cinema silencioso ter instituído no cinema o campo da escuta onde viceja a fantasia, enquanto que o cinema sonoro fechou este campo enchendo-o com o som.



Não é mero acaso que o silencioso errante, o resto, tenha retornado no musical e em boa parte das tentativas de re-encantamento do cinema por meio dos recursos do cinema silencioso no cinema sonoro, ou mesmo do cinema sonoro no cinema silencioso, a exemplo da trilha sonora onírica, retrofuturista composta pelo duo francês Jean-Benoît Dunckel e Nicolas Godin para o primeiro filme de ficção científica da história, Le voyage dans la lune (Viagem à lua), do francês Georges Méliès, quando, no remoto ano de 1902, estabeleceu fundamentos básicos para o futuro do cinema.



Enfim, o “cinema-arquivo”, que não deve ser confundido com o “cinema-de-arquivo”, estimula a atualização da reflexão sobre as múltiplas transições paradigmáticas, ontem do cinema silencioso para o cinema sonoro, hoje do cinema sonoro para a convergência multimídia. Neste novo mundo de possibilidades aventadas, cabe considerar os diferentes agentes humanos e não humanos (atores, diretores, roteiristas, produtores, técnicos, artefatos tecnológicos) que concebem, produzem e consomem os filmes, como elos de diferentes redes sócio técnicas. Um artifício que permite imaginar novas investidas da cinematografia, reveladoras de outras contradições e ambiguidades da transição tecnológica, tendo como referência, por exemplo, o espectador e o produtor.



A questão norteadora da reflexão suscitada pelo artista seria então: ao adotar uma visão linear [postura dominante em varias áreas] da inovação técnica no cinema, na qual o novo paradigma do cinema sonoro tornou imperativo o abandono do cinema silencioso, não se deixou para traz também uma parte significativa da sua capacidade de encantamento ?



Dinara Guimarães é autora de "Voz na Luz: Psicanálise e Cinema", Rio de Janeiro: Garamond, 2004; "Vazio Iluminado: o olhar dos olhares" Rio de Janeiro: Garamond, 2004 (2a.ed.)

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