Convidados


EPIFANIAS DE BRESSON

08.05.2012
Por Evaldo Mocarzel
EPIFANIAS DE BRESSON

Lançado no Brasil no segundo semestre do ano passado pela É Realizações Editora, “Bresson – ou O Ato Puro das Metamorfoses”, do crítico e ensaísta Jean Sémolué, é um precioso estudo sobre a obra do cineasta Robert Bresson, apesar do título cifrado e até certo ponto escalafobético, contrastando um pouco com a simplicidade e o minimalismo do grande mestre francês.



Sémolué lembra que, para Bresson, toda vida é feita de acasos e de predestinações, “cada filme tem a sua hora”, ressaltando ainda que esse grande artista era um “amador” na sua acepção mais apaixonada, como escreveu Malraux em “L’ Homme Precaire de La Litérature”.



Durante o Festival de Cannes em 1957, após a apresentação de “Um Condenado à Morte Escapou”, realizado no ano anterior, Bresson afirmou que “o cinema não é um espetáculo, é uma escritura”, e passou a se referir à arte cinematográfica como “cinematógrafo”, a invenção dos irmãos Lumière, à maneira de um grande amigo, também um mentor no início de sua carreira e que depois se tornou uma espécie de antípoda do cineasta francês: Jean Cocteau. Bresson foi muito amigo de Cocteau durante toda a vida e essa grande figura renascentista, que transitou por tantas linguagens, como a literatura, o cinema, o teatro e as artes visuais, chegou a assinar os diálogos do segundo longa-metragem de Bresson: “As Damas do Bois de Boulogne”, de 1943. No entanto, artisticamente, os dois foram se afastando paulatinamente: enquanto Cocteau gostava de bordar as suas obras com todo tipo de ornamento, Bresson enveredou por uma busca minimalista que poderia ser definida como “criação por subtração”, se despojando de todo tipo de excesso para tentar vislumbrar o “real” no inesperado e na essência epifânica da imanência de todas as coisas, sobretudo nos atos falhos dos não-atores, ou melhor, “modelos”, que passou a dirigir em seus sets de filmagem, como um pintor.



Após descartar o “star system” e todas as frivolidades do espetáculo, Bresson começou a garimpar e a reunir frases lapidares sobre as especificidades da linguagem cinematográfica, o que gerou décadas mais tarde o livro “Notas Sobre o Cinematógrafo”, coletânea de aforismos que engloba profundas reflexões sobre o fazer cinematográfico escritas principalmente em dois períodos: de 1950 a 58, e de 1960 a 74. São frases luminosas e poéticas, sempre irradiando o rigor de um grande artista querendo fazer de si mesmo um instrumento de precisão.



Bresson rejeitou o seu primeiro longa-metragem, “Os Anjos do Pecado”, com diálogos de Jean Giraudoux, de 1943. O primeiro motivo mais explícito é a interpretação teatral das atrizes, algumas da Comédie Française. Quando abandonou o espetáculo e defendeu a ideia de que a arte cinematográfica é uma escritura e que deveria ser chamada de “cinematógrafo”, o cineasta estava principalmente tentando se afastar do que ele chamava de “teatro filmado”, ou melhor, “cinema”. Nesse primeiro longa, há ainda algo que também passou a incomodar profundamente o mestre francês: o cheiro de madeira dos cenários. A locação se tornou uma das primeiras obsessões do estilo rigoroso de Bresson. Embora com uma certa afetação teatral e com muitas sequências rodadas em estúdio, “Os Anjos do Pecado” é uma obra que é puro Bresson. Temas como a morte como única possibilidade de transcendência, como única chance de vislumbrar um aceno de Deus, além do paradoxo da prisão como libertação, tudo isso está lá pulsando e revelando a face mais sincera desse grande artista sempre tão fiel a si mesmo, tentando encontrar a “lucidez” das tragédias gregas no desalento e no pessimismo suicida de seus personagens.



Embora trabalhando com atores e atrizes profissionais em seu segundo longa-metragem, entre eles a magistral Maria Casarès, Bresson rodou “As Damas do Bois de Boulogne” praticamente todo em locação. Jean Cocteau assina os diálogos, como já foi dito, e talvez isso tenha atenuado uma rejeição mais profunda a esse trabalho de 1945, que permaneceu em seu currículo.



Esse conflito na cabeça de Bresson entre o cinema (teatro filmado) e o cinematógrafo (a verdadeira arte cinematográfica) foi parcialmente resolvido no terceiro longa, que é uma espécie de divisor de águas na sua trajetória artística: “Diário de um Padre”, de 1951, em que trabalhou o tempo todo em locações e com “modelos”, com exceção da atriz que encarna a condessa: Marie-Monique Arkell. Cinco anos mais tarde, lançou um novo filme que consolidou de vez a essencialidade do mestre francês: “Um Condenado à Morte Escapou”, de 1956.



Em seu profundo estudo sobre Bresson, Jean Sémolué faz uma digressão sobre o livro “Notas sobre o Cinematógrafo”, comentando que a primeira parte, escrita de 50 a 58, apresenta a maior quantidade de páginas. Segundo o crítico, essa primeira parte separa por asteriscos, uma das outras, “verdades adquiridas pela especulação abstrata, mas no decorrer da labuta concreta; às vezes em seções: Dos Olhares, Da Música, do Automatismo”. Já a segunda parte, escrita de 60 a 74, nas palavras de Sémolué, “associa a fluidez à brevidade: nem títulos, nem sequer asteriscos, apenas espaços em branco para deslizar de um aforismo ao outro”. Essa diferença editorial entre as duas partes do livro tem um peso conceitual para o crítico francês: “passa-se de patamares sucessivos a uma continuidade corrida, em que virão inserir-se mais tarde dois novos filmes: ‘O Diabo Provavelmente’ (1977) e ‘O Dinheiro’ (83)”, os dois últimos trabalhos de Bresson.



Ao anunciar o abandono do cinema como espetáculo no Festival de Cannes em 57, passando a apostar na “escrita” da sétima arte, ou melhor, do cinematógrafo, Bresson coloca de vez para escanteio a ideia de cenários construídos em estúdios e está sempre em busca de locações. O mestre francês jamais fez um documentário, mas buscava o “real” na ficção propriamente dita, principalmente nos atos falhos de seus modelos, como já foi dito, sempre com uma “semelhança moral” com os personagens que criava. Em 1952, Bresson deu uma entrevista para a revista Cahiers du Cinéma e fez uma lista dos filmes mais importantes da História do Cinema: “A Corrida do Ouro” e “Luzes da Cidade”, ambos de Chaplin, “O Encouraçado Potenkim”, de Eisenstein, “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio de Sica, e “O Homem de Aran” e “Louisiana Story”, dois documentários de Robert Flaherty.



Jean Sémolué reproduz em seu livro um depoimento de Bresson a Jean Quéval: “É o ‘interior’ que comanda. Sei que isso pode parecer paradoxal numa arte que é toda ‘exterior’. Mas vi filmes em que todo mundo corre e que são lentos. Outros em que os personagens não se agitam e que são rápidos. Constatei que o ritmo das imagens não tem o poder de corrigir toda lentidão interior. Só os nós que atam e desatam no interior dos personagens conferem ao filme seu movimento, seu verdadeiro movimento. É esse movimento que eu me esforço a tornar aparente por alguma coisa ou alguma combinação de coisas – que não seja só um diálogo”. Outro depoimento de Bresson resgatado pelo crítico em seu estudo: “O cinema sonoro inventou o silêncio. Acho maravilhoso e cômodo um diálogo explicativo. Porém o ideal seria de preferência que o diálogo acompanhasse os personagens, como o guizo acompanha o cavalo, o zumbido, a abelha”. Uma frase do mestre francês do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”: “É com o nítido e o preciso que você forçará a desatenção dos desatentos de olho e de ouvido”.



Em 1962, Eric Rohmer deu a seguinte declaração sobre a interpretação no cinema: “Depois dos filmes de Bresson, não se pode mais representar como antes”, referindo-se ao seu trabalho com modelos. Sémolué comenta a atuação nos filmes de Bresson: “aspecto documental e clima de contenção, de reserva, sem necessariamente excluir a alegria”. Para o crítico, uma das marcas mais fortes no cinema do mestre francês são as “relações entre ruídos e silêncio, entre falas e imagem, entre olhares e segredos”. Rigor é a palavra-chave para se frequentar os filmes de Bresson, afirma Sémolué: “A palavra rigor se impõe de todas as maneiras: rigor de construção, rigor de estética fílmica, rigor do debate entre vontade e sina”. Acasos e predestinações, como ressalta no início do livro.



O crítico comenta que a realização de “As Damas do Bois de Boulogne” enfrentou muitas dificuldades de produção antes e depois da libertação de Paris no final da Segunda Guerra Mundial: o filme foi rodado de 10 de abril de 1944 a 10 de fevereiro de 45. “Baseado no conto ‘Jacques, o Fatalista e Seu Amo’, de Diderot, o filme tem como personagem principal a senhora de La Pommeraye, vivida por Maria Casarès, que quer controlar o próprio destino arquitetando o dos outros”, lembra Sémolué. “Com o firme propósito de se vingar do marquês de Arcis, que não a ama, La Pommeraye faz com que ele se case com a senhorita d’Aisnon, jovem prostituída pela própria mãe, fazendo-o acreditar que essas duas mulheres são a própria personificação da virtude”, conta. O crítico explica que Bresson condensou os diálogos entre a senhora de La Pommeraye e o marquês de Arcis, aumentou outros entre a mãe e a filha, e depois convidou Jean Cocteau para criar uma unidade com o que restava dos diálogos originais de Diderot, “cujo tom magnífico queria preservar”, afirma Sémolué.



“Eu me curvei completamente a Bresson”, confessou Jean Cocteau em entrevista resgatada pelo crítico em seu livro. “Jamais houve a menor discordância”, garantiu o célebre autor da peça “A Voz Humana”. “Meu papel de dialoguista? Quase nulo. Bresson me dava as cenas, a quantidade de falas (...) A dificuldade era esta: conservar o tom dos enciclopedistas, na ambientação que era muito da língua escrita de hoje. Um tom mais rebuscado, mais organizado que a linguagem habitual”, explicou. Embora antípodas em suas trajetórias artísticas, Cocteau e Bresson foram muito amigos até o fim da vida, como já foi dito. Em 1973, numa edição da Cahiers du Cinéma em homenagem a Cocteau, Bresson declarou o seguinte: “Acredito que o que sedimentou a nossa amizade é que entregávamos toda a nossa alma aos nossos filmes. Minha admiração pelos achados que pululavam nos filmes dele não tinha limites”.



Em “As Damas do Bois de Boulogne”, Jean Sémolué vê influências do rigor de Racine e ainda as progressões da comédias de Marivaux, cujos diálogos inflamados sobre o amor viraram neologismo: “marivaudage”. O crítico lembra palavras de Racine, autor de “Phedra”: “Uma ação simples, carregada da pouca substância (...) e que, progredindo gradativamente rumo ao fim, é sustentada pelos interesses, pelos sentimentos e pelas paixões dos personagens”. Sémolué analisa a construção dramatúrgica de Bresson para “As Damas do Bois de Boulogne”: “As sequências tecem uma trama cuja continuidade se funde perpetuamente na elipse. (...) À intensidade dos estados de ânimo corresponde a intensidade das imagens: a brancura nua dos aposentos, a dignidade dos trajes, a acuidade dos diálogos, a nitidez dos ruídos, a qualidade do silêncio; clima raro, se não rarefeito, puro, se não purista, em que cada detalhe, escolhido com um cuidado meticuloso, se reveste de um valor significativo”. Mas ainda há cenários nesse filme, depois abandonados de vez por Bresson.



A relação do cineasta com Maria Casarès não deve ter sido muito fácil, pois, segundo o crítico, ela teve de “conter gritos e tremores em benefício de uma tensão interna contínua”. Sémolué garante que, no final das contas, o mestre francês ficou satisfeito com o resultado, considerando a atuação dessa grande atriz “admirável na sua não-tragédia”. Em 1958, Maria Casarès (que, diga-se de passagem, levou Bernard-Marie Koltès a se tornar dramaturgo após vê-la encarnando Medeia nos palcos de Paris) confessou em entrevista que, durante as filmagens, ficou muito dividida entre o interesse pelo processo de criação de Bresson e o “ódio pela sua tirania”. O cineasta queria que essa grande atriz dramática atuasse como comediante. “Isso dá o tom do filme”, assegura o crítico. “Um personagem trágico representa uma comédia, mas para reencontrar mais plenamente o trágico no seu coração”, explica Sémolué. “Eu me vingarei”, diz a personagem Hélène, vivida por Maria Casarès. “E Bresson faz com que o lirismo seja reabsorvido no silêncio e na imobilidade”, ressalta o crítico. “No final do filme, ao forjar o destino alheio (a jovem Agnès e Jean acabam se apaixonando, apesar da armação de Hélène), Hélène sela a crueldade do próprio destino”.



Sémolué lembra as palavras de René Briot, autor de “As Técnicas Cinematográficas”, sobre “As Damas do Bois de Boulogne”: “Essa poesia cinza, estranha, que forma uma auréola no filme, é absolutamente nova no cinema; ela brota, em parte, da nudez da escritura”. No livro “A Força das Coisas”, Simone de Beauvoir comenta o “intenso despojamento” do filme. Em 1945, ano da realização do filme, o despojamento já é para Bresson a condição primeira da intensidade, garante o crítico.



Em 1951, Bresson lança “Diário de um Padre”, a primeira e única adaptação de um grande romance. “Uma tentativa de fundir espiritualidade e escrita”, ressalta o crítico. “Os personagens do filme são os personagens de um diário, como que absorvidos pela personalidade do pároco. Bresson queria que Dufréty, o padre que largou o sacerdócio, fosse apagadiço, só uma silhueta. Isso o levou a conferir menos realidade a todos os demais personagens fora daquele que escreve e fala na primeira pessoa”.



É interessante comentar que Bresson jamais usou a narração em off de modo meramente didático e reiterativo, o que virou uma espécie de imposição tirânica no cinema contemporâneo, sobretudo nos filmes de Hollywood. Para o mestre francês, a narração em off sempre entrava em quadro com uma coerência dramatúrgica muito grande, interagindo e interferindo na condução da narrativa, também trazendo outras camadas para a história que está sendo contada. No caso desse filme de 1951, a voz do diário faz diversas intervenções em momentos estratégicos da narrativa. “Os personagens e as palavras parecem emergir da voz e da presença do protagonista, como os acontecimentos do seu diário”, analisa Sémolué. “Diário de um Padre” foi o primeiro filme de Bresson com modelos, mas, como já foi dito, havia no elenco uma atriz dos palcos franceses, Marie-Monique Arkell, no papel da condessa.



Durante o processo de criação do seu próximo projeto, “Um Condenado à Morte Escapou”, de 1956, Bresson conversou com François Truffaut sobre a busca artística que o guiava: “Estou trabalhando na mesma direção de “Diário de um Padre”, mas gostaria de atingir uma pureza maior, um despojamento maior. Desta vez, não tenho um único ator profissional”.



Sémolué lembra os três objetivos principais almejados por Bresson nesse novo projeto, baseado no relato documental de André Devigny, resistente encarcerado pela Gestapo que conseguiu fugir do Forte de Mont Luc, em Lyon, em 1943: “precisão, frieza e verdade”. Em seu livro, o crítico inclui um depoimento de François Leterrier, o modelo que faz o papel de Fontaine, o protagonista de “Um Condenado à Morte Escapou”. O mestre francês queria, “com um mínimo de truques”, que o modelo desgastasse portas e colheres no decurso da filmagem. Esse foi um dos pilares da direção de Bresson para François Leterrier, algo muito prático, concreto, material, uma das vertentes mais marcantes do estilo do cineasta: extrair, de maneira minimalista, o sublime da simplicidade e da materialidade do set. Disse Bresson sobre o filme: “Tratava-se de fazer um filme rápido com coisas lentas, com a vida pesada da prisão. A decupagem soma 600 planos, mas não há sequências; o filme todo forma uma sequência”.



Nesse filme tão essencial, a voz em off do narrador, protagonista da fuga, diferentemente de “O Diário de um Padre”, “não se superpõe aos diálogos para encobri-los, mais propriamente ela mantém os fatos à distância, somos mais testemunhas do que confidentes”, analisa Jean Sémolué. Assim como seu próximo projeto, “Pickpocket – O Batedor de Carteiras”, de 1959, “O Condenado à Morte Escapou” tem belíssimos planos de mãos trabalhando, justamente desgastando portas e colheres.



O crítico comenta que Bresson não pediu a François Leterrier que expressasse sentimentos claramente analisados, que os esquematizasse numa atuação explicativa. “É preciso reservar-se surpresas com os intérpretes: acontecem então coisas extraordinárias”, disse Bresson a Sémolué. Diz o crítico: “Às descobertas feitas por Bresson no decorrer da realização correspondem mais tarde as do espectador no decorrer da projeção. É maravilhoso descobrir-se um homem à medida que se avança num filme, em vez de saber com antecedência o que será... que, na verdade, não seria senão a falsa personalidade de um ator. Num filme, é preciso haver esse sentimento de uma descoberta do homem, de uma descoberta profunda. (...) Para a interpretação, assim como para o ritmo e os outros elementos da criação fílmica, a emoção resulta menos dos detalhes e das suas variações que do movimento de conjunto, da continuidade”.



Sémolué ressalta que Bresson queria criar uma espécie de “continuidade” dramática, sobretudo anímica em seus modelos. E lembra o subtítulo de “Um Condenado à Morte Escapou”: O vento sopra onde ele quer. O crítico explica que esse subtítulo foi extraído da cena do filme em que o pastor entrega a Fontaine um trecho do Evangelho Segundo São João, que havia copiado para ele. Fontaine lê o trecho para Blanchet: “Disse-lhe Nicodemos: ‘Como pode um homem nascer sendo velho? Como pode ele tornar a entrar no ventre da mãe e nascer?’ Jesus respondeu: ‘Não te maravilhes por eu ter dito: necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde ele quer e ouves a sua voz, mas não sabes de onde ele vem nem para onde vai’”. O crítico comenta que “é possível que o sentido de ‘o vento sopra onde ele quer’ seja a negação metafísica do acaso, como a vontade de Fontaine é a sua negação psicológica e a arte de Bresson, estética”.



Sémolué assegura que o filme seguinte desse grande artista, que criou uma nova sintaxe para a linguagem do cinema, é um passo ainda mais radical para o seu estilo rigoroso: “a recusa total do jogo interpretativo e da dimensão do espetáculo”. Como já foi dito, o filme é “Pickpocket”, de 59. Na época do lançamento dessa que é considerada uma das obras-primas mais seminais de Bresson, o cineasta Louis Malle escreveu o seguinte na imprensa francesa: “‘Pickpocket’ é uma entre as quatro ou cinco grandes datas da História do Cinema”. É interessante comentar que, no documentário “A Estrada para Bresson” (“The Road to Bresson”), de Jurriën Rood e Leo de Boer, de 1984, que circula na internet, o mesmo Louis Malle dá um depoimento espinhoso sobre o mestre francês, afirmando que, para Bresson, só existia o próprio cinema, o restante simplesmente não tinha a menor importância.



Mas, digressões à parte, “Pickpocket” traz uma das sequências mais esplendorosas de toda a obra de Bresson: uma espécie de coreografia de planos em que vemos carteiras, dinheiro e relógios sendo afanados numa estação de trem, um belíssimo balé de mãos que, para o cineasta, tinham alma, e por isso precisavam ser filmadas com todo carinho e rigor em planos-detalhe. O crítico vê nesse filme “a inteligência das mãos”. O mestre francês tinha fascínio por gestos involuntários de mãos, uma espécie de metonímia coreografada da própria imponderabilidade do acaso que nos habita, da nossa divindade mais profunda que irrompe em ato falho.



Sémolué comenta que, durante o processo de criação de “Pickpocket”, Bresson ia constantemente a uma delegacia de polícia para apurar informações sobre as atividades dos batedores de carteiras. Nesse período, adiou ou renunciou ao projeto de “Lancelot Do Lago”, que só realizaria vinte anos depois. “Pickpocket”, para o crítico, “entrelaça a aventura das mãos e a aventura das almas. Entrelaça uma aventura da prática do roubo de rua e também uma aventura de amor; a aproximação de duas almas”. É interessante ressaltar mais uma vez a utilização da voz em off do personagem principal no filme, jamais a redundância didática e explicativa, o que sempre empobrece demais a linguagem cinematográfica quando som e imagem se reiteram e acabam se anulando. Como em “Diário de um Padre” e “Um Condenado à Morte Escapou”, a voz em off em “Pickpocket” é utilizada para “interiorizar” as imagens do filme, segundo o crítico, para que vejamos tudo sob o ponto de vista de Michel, um gatuno que, no fundo, rouba para se sentir vivo, surrupia não para acumular ou enriquecer, mas para gastar, encontrando por fim uma razão de viver, o amor por Jeanne, uma espécie de libertação justamente quando se vê aprisionado num cárcere, um paradoxo recorrente nos personagens de Bresson. “Oh, Jeanne, para chegar até você, que caminho eu tive que tomar”, diz Michel no final de “Pickpocket”, uma estranha história de amor construída com a sempre desconcertante materialidade epifânica do mestre francês. “No final do filme, os estranhos caminhos do amor se tornam os caminhos da descoberta e do autoconhecimento no balanço feito pelo personagem Michel”, explica Jean Sémolué.



O crítico revela que, inicialmente, Bresson queria o seguinte título para “Pickpocket”: “Incerteza”, mas foi demovido da ideia pelo amigo Jean Cocteau, que considerava “Pickpocket” um título mais direto e muito mais internacional. Sémolué analisa a relação de Michel com a mãe: “ele a rouba e depois devolve o dinheiro, após um furto, mas pensamos que era para socorrer a mãe a quem tudo falta. No reencontro dos dois, nada de perdão, mas o encorajamento da mãe ao filho, o que torna tudo mais intenso”.



O crítico lembra que Louis Malle, em artigo escrito na época do lançamento, foi o primeiro a assinalar o aspecto erótico das sequências de roubo, inclusive o espasmo da glote que acompanha a abertura da bolsa. Como já foi dito, mas sempre vale a pena enfatizar, Bresson acreditava que as mãos tinham alma, pois obedeciam a impulsos involuntários do nosso inconsciente. Sémolué diz que “Pickpocket” é um “Elogio da Mão”, como o belo texto do historiador da arte Henri Focillon que foi batizado com esse título: “Mãos serviçais? Talvez. Mas dotadas de um gênio enérgico e livre, de uma fisionomia – rostos sem olhos, sem voz, mas que vêem e falam”.



O crítico comenta que a relação de Michel com seu amigo Jacques e com sua amada Jeanne é livremente inspirada em “Crime e Castigo”, de Dostoievski, sobretudo na relação do protagonista do livro do romancista russo, Raskolnikov, com Porfírio e Sonia. Dostoievski, aliás, é uma influência muito forte sobre Bresson, que realizou dois filmes assumidamente baseados na obra desse imenso escritor: “Uma Mulher Suave” e “Quatro Noites de um Sonhador”.



Jean Sémolué lembra que Gilles Deleuze escreveu sobre “Pickpocket” em “A Imagem-Movimento” e utilizou a expressão “espaço tátil”. O trecho é o seguinte: “Longchamp, a estação de Lyon, em ‘Pickpocket’, são vastos espaços de fragmentação, transformados segundo junções rítmicas que correspondem aos afetos do ladrão (...) O espaço em si saiu das suas próprias coordenadas, como das suas relações métricas. É um espaço tátil”. O crítico também resgata uma expressão de Jean Genet em “Diário de um Ladrão” para definir o olhar de Michel antes dos seus golpes: “solidão cheia de arrogância”. Ele analisa ainda a personagem Jeanne, vivida por Marika Green: “sempre do lado da claridade, a graça, o amor, a preocupação com a mãe de Michel”. A última frase do filme (“Oh, Jeanne, para chegar até você, que caminho esquisito tive que tomar”), segundo Sémolué, abriu caminho e vaticinou a realização do próximo projeto de Bresson: “O Processo de Joana D’Arc”, de 1962.



“Não a ida até a Idade Média da lenda, de Lancelot e do Graal, tão ansiada por Bresson desde ‘Diário de um Padre’, mas a da História, com ‘H’ maiúsculo: uma nova prisão, como em ‘Pickpocket’, mas dessa vez tendo a morte como saída, o martírio como libertação”, analisa o crítico, como mais para frente novamente apareceria num filme como “O Diabo Provavelmente”, com o jovem suicida que paga a um amigo para matá-lo com o intuito de sair de um mundo comandado pelo demônio e tentando desesperadamente vislumbrar um aceno de Deus.



Depois de dois filmes completamente inspirados em fontes documentais (“Um Condenado à Morte Escapou” e “Pickpocket”), mais um projeto de pura inspiração documental: “O Processo de Joana d’Arc”, baseado nos originais dos autos do processo de condenação da célebre mártir francesa.



Neste filme, “o ritmo das palavras puxou o ritmo das imagens”, disse Bresson. Sémolulé lembra que, no início, a voz de Joana irrompe na tela antes da sua imagem, assim como a voz do bispo. “As imagens nascem das palavras”, observa o crítico, ressaltando que, “como ‘O Diário de um Padre’ é um diário de ponta a ponta, ‘O Processo de Joana d’Arc’ é um processo também de ponta a ponta”.



O crítico volta a enfatizar que a narração de Bresson jamais é meramente ilustrativa: em “O Diário de um Padre”, é a voz do diário no presente recriando os personagens que contracenam com o padre, todos emanações do diário. “Em ‘Pickpocket’, a narração pontua e por vezes abafa os diálogos, assim como em ‘O Diário de um Padre’, mas construída com frases com verbos no passado, como se fossem estados da alma do personagem Michel em suas reminiscências até chegar à sua amada Jeanne.



Disse Bresson sobre “O Processo de Joana d’Arc”: “Eu tinha (...) de evitar que ‘O Processo’ ficasse lento, pesado. Assim, entro de sola no filme, e prossigo com ele num ritmo muito rápido. Pode-se escrever um filme com colcheias e semicolcheias porque ele é música”. Mais um depoimento de Bresson sobre o filme resgatado por Jean Sémolué em seu livro: “As palavras (dos autos do processo) que me foram dadas e comportavam um número bastante grande de repetições, eu as condensei, a fim de conservar quase somente o essencial. Algumas vezes alterei um pouco a sua ordem. Eu as ritmei”. O crítico explica que Bresson condensou os interrogatórios públicos (de 21 de fevereiro a 3 de março de 1431) e uma série de interrogatórios complementares posteriores, com um tribunal restrito, no quarto de Joana. “O filme junta o segundo e o terceiro interrogatórios na grande sala e, sendo assim, só comporta cinco sessões públicas em vez de seis. Ele funde igualmente num só o primeiro e o segundo interrogatórios complementares. Fragmentado, picado, retalhado, o filme se mostra, ao mesmo tempo, e, por isso mesmo, contínuo, ininterrupto, obstinado”, analisa.



Sémolué comenta que o filme é construído como uma corrida de Joana à fogueira, ressaltando que “Pickpocket” e “Um Condenado à Morte Escapou” lembram documentários, enquanto “O Processo de Joana d’Arc” tem ares de cinejornais, notícias da atualidade. “Na acareação de Joana com seus algozes, Bresson opta por campo e contracampo, e pelo plano médio, o mais neutro e o mais objetivo entre os planos”, diz o crítico.



Para Sémolué, trata-se de um dos filmes mais austeros de Bresson. “O final dialoga com o final de ‘O Sangue de um Poeta’, de Cocteau: a chaminé desmoronando no começo e no fim, para negar o tempo”, compara. Para criar o final de “O Processo de Joana d’Arc”, o mestre francês também se inspirou ou pelo menos pensou no enterro do próprio pai, oficial de cavalaria, garante Sémolué. Diz Bresson em seu livro “Notas sobre o Cinematógrafo” sobre o filme: “Sem cair no teatro, na farsa, tentei encontrar com palavras históricas uma verdade não histórica”.



O crítico lembra que, no início do filme, a construção histórica só com detalhes: as lajes da catedral, mãos, pés, partes do corpo. “As palavras no filme são entoadas de maneira desdramatizada, de forma austera, sem mímicas, gestualidades teatrais ou mesmo entonações enfáticas. A roupa de Joana d’Arc não menos austera, com tecido grosseiro, mas que passou por um acabamento e a supervisão de Mademoiselle Chanel, que era parente de Bresson”, revela Sémolué.



Em 1966, a realização de um filme que é considerado por muitos a grande obra-prima de Bresson e que deflagrou na época de seu lançamento um programa inteiro na televisão francesa com a participação de nomes como Marguerite Duras, Jean-Luc Godard e Louis Malle, além do mestre francês e de outros membros da equipe, reunidos para debater a arte cinematográfica em seu estado mais puro a partir desse trabalho seminal: “Au Hasard Balthazar”, batizado no Brasil como “A Grande Testemunha”. Já o programa televisivo, que circula na internet, se chama “Um Metteur em Ordre”.



O diretor de fotografia do filme, Ghislain Cloquet, comentou no programa que Bresson fez vinte planos de uma janela vazia e depois disse a ele que o melhor era a quinta tomada. O grande mestre francês sempre obcecado por flagrar o devir do acaso, sempre tentando eternizar a imponderabilidade do inesperado na linguagem do cinema. Assim era o “real” para ele. Durante as filmagens, Bresson só permitiu o uso de uma única lente: 50 mm. “Essa restrição produziu efeitos maravilhosos”, garantiu o diretor de fotografia. Um exemplo das tais “leis de ferro” que o mestre francês criava para ele mesmo e para as pessoas com quem trabalhava, nem que fosse para depois rompê-las, como afirma no livro “Notas sobre o Cinematógrafo”.



Para Bresson, o teatro é a exterioridade, enquanto a arte cinematográfica, ou melhor, o cinematógrafo, é a interioridade, o íntimo, a profundidade do ser. “As palavras devem ser usadas quando não podemos expressar as coisas através de imagens”, disse o cineasta no mesmo programa. “As palavras devem ser usadas quando queremos penetrar no coração das coisas”, ensinou, destacando que o som nos filmes engloba três tipos de modalidades: ruídos, música e diálogo. “Esses três elementos precisam do silêncio para existir e expressar algo”. E o diálogo era uma espécie de último recurso no cinema de Bresson.



Para o mestre francês, não há arte sem transformação, e ele procurava “aplainar” as suas imagens, “achatando-as” como se trabalhasse com um ferro de passar roupa, costumava dizer, uma tentativa de depurar a qualidade dos planos sempre em busca de uma “neutralidade”, para que as imagens se transformassem no contato umas com as outras no processo de montagem. Bresson gostava de criar ações nas bordas do quadro ou fora dele, sugerindo-as sobretudo através de sons e potencializando assim a capacidade que cada espectador tem de confeccionar imagens com o próprio imaginário. No universo do som, procurava reorganizar os ruídos inorganizados de todas as coisas para depois reordená-los no silêncio. Acabou abandonando a música não-diegética, ou seja, que não faz parte da narrativa, que não é observável dentro do quadro sendo executada por instrumentos visíveis, para trabalhar os ruídos como uma autêntica partitura musical. Para ele, a música é um elemento capaz de distorcer o “real” tão potente quanto o álcool e as drogas.



Bresson não gostava de ser chamado de “metteur-en-scène”, uma expressão muito teatral. Também não queria ser chamado de “cineasta” e muito menos de “realizador”. Sentia-se uma espécie de “ordenador”, afirmou no programa televisivo “Un Metteur-en-Ordre”, alguém que coloca em ordem os sons e as imagens inorganizadas do mundo.



No teatro, afirmou no mesmo programa, o gesto é pensado e construído a partir da palavra. No cinematógrafo, não, busca-se o gesto automático não pensado, independente das palavras. Esse automatismo era para ele uma espécie de emanação do “real”. Seu trabalho com modelos, sublinhe-se, nada tem a ver com essa utilização de atores não-profissionais que virou uma febre no cinema contemporâneo e que mais parece um revival do neorrealismo italiano. Bresson buscava seres humanos com uma “semelhança moral” com os personagens que criava, como já foi dito, e não queria grandes interpretações viscerais em seus filmes. O modelo era apenas um elemento de composição dos quadros e quem realmente conta as histórias na sua obra é o corte: as elipses, a passagem de uma imagem para a outra e logicamente a imaginação de cada espectador. Uma de suas estratégias era a repetição incessante das ações no set de filmagem, o que deveria de algum modo enlouquecer os modelos, mas ele queria dissociar as palavras e os gestos da mente, para criar algo impensado, inesperado, automático. Ao ler o roteiro com os modelos, leituras completamente “brancas”, sem nenhum tipo de interpretação teatral afetada ou maneirista: leituras desdramatizadas, rigorosas e exatas, com o intuito de flagrar momentos genuínos irrompendo do fundo da alma sem nenhum tipo de pensamento prévio. Uma espécie de arquitetura da “intuição” dos modelos.



“É preciso dissociar o modelo da ação do filme para que coisas inesperadas aconteçam”, disse no mesmo programa na época do lançamento de “A Grande Testemunha”. Completamente diferente do gesto esculpido e das falas decoradas do teatro. “Como copiar a vida sem imitá-la?”, ele se pergunta no mesmo programa. “Se é uma imitação não pode ser real”, assegura, ressaltando que a câmera é um aparelho maravilhoso que registra até mesmo o que o olho não vê. Bresson jamais mostrava a seus modelos os copiões do dia anterior para que não ficassem pensando, para que não ficassem racionalizando o que fizeram, para que transitassem no set utilizando apenas a própria intuição. Ele somente trabalhava com um determinado modelo uma única vez, pois poderia correr o risco de se deparar com cacoetes e maneirismos no filme seguinte. A única exceção foi Jean-Claude Guilbert, que trabalhou duas vezes com o mestre francês: em “A Grande Testemunha” (1966) e “Mouchette” (1967).



Bresson pedia aos modelos para decorar as falas do roteiro sem pensar nos significados, para até mesmo ignorar o sentido daqueles diálogos, como se as frases não fossem feitas de palavras, mas de sílabas. O significado vem então para eles de forma inconsciente, acreditava piamente nisso. “O cinematógrafo não é feito de gestos e de palavras, mas dos efeitos desses gestos e dessas palavras”, explicou no programa. “Mostrar os efeitos e depois as causas, como na vida, como no real”, ensinou. “O cinema não é um somatório, uma síntese das outras artes, mas uma arte completamente diferente, nova. O cinema, o rádio e a televisão estão matando as artes, mas, por outro lado, as artes vão renascer do cinema, do rádio e da televisão”, ponderou. Para ele, o cinema, ou melhor, o cinematógrafo, é uma espécie de caminho através do qual o ser humano pode se aprofundar sobre si mesmo.



Mas, digressões à parte, voltando à resenha do livro “Bresson – Ou o Ato Puro das Metamorfoses”, de Jean Sémolué, o crítico comenta que, depois de “Au Hasard Balthazar” (“A Grande Testemunha”), o mestre francês vai retomar assuntos mais restritos, seguindo, em menor ou maior grau, a esteira dessa grande obra de 1966, pelo menos os primeiros entre eles. Diz Sémolué: “Situado no coração de um itinerário artístico, esse filme se encontra igualmente no centro das preocupações pessoais, morais: recordações de infância; amor pela natureza, pelos animais; indignação diante de certos comportamentos; reflexões e perguntas acerca do sentido da vida”.



Uma espécie de “ampliação do olhar”, segundo o crítico: “Os filmes anteriores de Bresson eram filmes de aprisionamento. ‘A Grande Testemunha’ parece primeiramente uma abertura, uma explosão. Aí está uma obra que se desdobra: no tempo, no espaço, nos grupos humanos”. A repetição da vogal “a” no título original, “Au Hasard Balthazar”, diz Sémolué, cria um ritmo e reproduz o andar do burro, também o andar do próprio filme.



“O asno é a ligação entre os acasos e os personagens do filme, assim como a personagem Marie. ‘Au Hasard Balthazar’ também sugere andar a esmo, à deriva. Balthazar é ainda o nome de um dos três reis magos que foram ao encontro de Jesus. O asno adquire muitos significados no decurso do filme e diferentes personagens lhe atribuem diferentes concepções”, analisa Sémolué: para o mestre-escola, Balthazar é um “burro retrógrado e ridículo”; para Arnold, às vezes é um “satanás”, outras vezes um “camarada”; para o adestrador do circo, de brincadeira, um “gênio”; para a mãe de Marie, no fim, um “santo”; para Jacques e Marie, “a infância idílica”. Bresson teve a ideia de escrever o roteiro ao ler “O Idiota”, de Dostoievski, mais especificamente uma passagem em que um asno urra no romance. “Ao redor de Balthazar, se descortina um panorama de vícios”, diz o crítico. “O orgulho afeta quase todos os personagens. Ainda cólera, luxúria, preguiça, gula, alcoolismo e avareza. (...) Diferentemente de Balthazar, a personagem Marie julga aqueles que a fazem sofrer: o orgulho do pai; a maldade de Gérard, o chefe da gangue; a avareza do negociante de grãos. Bathazar se submete, Marie se revolta. São camadas do roteiro de Bresson”.



Em “A Grande Testemunha”, mais uma influência implícita de Dostoievski. No final da primeira parte do romance “O Idiota”, a heroína diz: “Um sem-número de vezes eu ficava imaginando quimeras, um homem bom, honesto, generoso, um pouco bobalhão como você, que viria me dizer: ‘A senhorita não tem culpa, Nastássia Filippovna, e eu a adoro!”. Segundo Sémolué, há o mesmo movimento, as mesmas palavras na longa conversa entre Marie e Jacques no filme. Bresson gostava muito do romance “O Idiota”, garante o crítico, que ressalta a beleza do capítulo V, em que o príncipe conta à generala Epantchina que o grito de um burro, na Suíça, o despertou e lhe devolveu a lucidez; o príncipe tece em seguida o elogio desse animal. “Cada um de nós é perfeitamente capaz de se apaixonar por um burro”, diz a generala às filhas. Essa passagem do romance é a gênese de “A Grande Testemunha”, uma espécie de parábola, como já foi dito, sobre os vícios da condição humana encadeado pela figura do burrinho Balthazar.



Segundo Jean Sémolué, “o filme é todo pontuado por ações cercadas de incertezas, em que temos de imaginar o que aconteceu e as respostas não nos são dadas”. Um exemplo: a humilhação imposta a Marie por Gérard. Não sabemos exatamente o que aconteceu. “Bresson leva o espectador a se fazer perguntas, mas não lhe impõe resposta alguma. Cabe a nós imaginar. A sugestão de possibilidades diversas se revela muito mais rica do que uma escolha única mostrada por imagens explícitas”. Palavras de Bresson sobre o filme: “‘A Grande Testemunha’ é a nossa agitação, as nossas paixões diante de uma criatura viva que é toda humildade, santidade, no caso, um burro”.



Quatro meses depois do lançamento de “A Grande Testemunha”, Bresson começa a rodar “Mouchette”, voltando 16 anos depois ao universo de Bernanos, após “Diário de um Padre”. O crítico lembra que nesse filme Bresson cria um paralelo entre os animais de caça e Mouchette: perdizes e lebres sendo mortas antes de Mouchette se matar. Segundo Sémolué, Bresson não detectou em Nadine Nortier, a menina que vive Mouchette, “a natureza de uma intérprete para fazê-la atuar, mas captou a natureza de um ser na sua disponibilidade nata”.

Como Balthazar, de “A Grande Testemunha”, “Mouchette descobre a vida ao ser confrontada com diferentes vícios sucessivamente, antes de morrer, com ela, na natureza”, compara o crítico. “Mas Mouchette julga os homens. Pelo menos, fica revoltada”, ressalta.



Continua Jean Sémolué: “A diversidade de planos em ‘Mouchette’ é muito grande, dos planos próximos de rostos, mãos e objetos, aos planos de detalhes. Ele é, entre os filmes de Bresson, com exceção do curta-metragem ‘Assuntos Públicos’ (seu primeiro filme), o mais rico em planos gerais. A comparação entre as duas pistas de corrida de cavalos de ‘Pickpocket’ e as duas caçadas de ‘Mouchette’ é reveladora: de um lado, ouvem-se apenas os galopes, veem-se apenas o rosto e as mãos de Michel; do outro, veem-se os caçadores, os cães, acompanha-se a corrida ou o voo da caça. Do mesmo modo, o parque de diversões de ‘Pickpocket’ não passa de barulhos e reflexos, ao passo que, em ‘Mouchette’, veem-se os carrosséis, as barracas, os frequentadores. Desistência? Concessões?”, pergunta o crítico sobre o estilo rigoroso de Bresson: sugerir imagens com sons sem mostrá-las explicitamente. Ele mesmo responde: “Não, para essa personagem, para esse filme, ‘Mouchette’, a sobriedade convém mais do que o despojamento. Não há permissividade descritiva alguma”.



O crítico comenta que os primeiros personagens de Bresson tinham um objetivo a alcançar. “Em ‘Mouchette’, nada de projeto, nem sequer de vocação, o personagem não passa de um destino. O tenente Fontaine, de ‘Um Condenado à Morte Escapou’, parece o mais livre, o mais forte dos heróis bressonianos; mas Bresson quis sugerir nesse filme uma mão superior, que dirige os acontecimentos. Essa predestinação se exerce cada vez mais, de ‘Pickpocket’ a ‘O Processo de Joana d’Arc’, de ‘A Grande Testemunha’ a ‘Mouchette’”, analisa.



Sémolué disseca as camadas dramatúrgicas do roteiro de “Mouchette”: “Fatos são apenas fatos, sem dúvida, mas por que eles se dão exatamente naquele exato instante? A mãe morre justamente quando a filha precisa dela mais do que nunca e vai lhe falar dessa necessidade. A mulher da mercearia, a mulher do guarda, a sacristã, sobretudo, aparecem no caminho de ‘Mouchette’ para fazê-la dizer o necessário para levá-la ao suicídio, como três parcas tecendo o fio do seu destino, como as três bruxas empurrando Macbeth na sua queda. A velha que ‘gosta dos mortos’, a mais impressionante das três, parece a morte personificada: seca e encarquilhada. Com uma voz miúda e um olhar agudo, ela fala de aromatizantes e de mortalha. Estaria farejando em ‘Mouchette’ a morte se aproximando? A menina estaria enfeitiçada por essas estranhas palavras, por esse momento não menos estranho? Bresson não interpreta os fatos; ele se limita a mostrá-los”.



O crítico destaca que “Mouchette”, o filme, abre e fecha com a música “Magnificat”, de Monteverdi. Palavras de Bresson: “Não se trata de uma música de apoio ou de reforço; ela precede e conclui. A música envolve o filme de cristianismo. Era necessário”. Na decupagem, a música de Monteverdi também seria ouvida na cena do estupro e no massacre das lebres, mas Bresson resolveu deixar apenas no começo e no final, revela o crítico. Disse o mestre francês ao jornal Le Monde em 1967 sobre o final de “Mouchette”: “A menina Mouchette cai rodando pela encosta, a água se fecha sobre ela como se não houvesse nada. Dar sumiço dessa maneira é a morte que eu quis passar também em ‘O Processo de Joana d’Arc’ com o local da fogueira e as correntes repentinamente vazias”. Outro depoimento de Bresson sobre o filme resgatado no precioso livro de Jean Sémolué: “O que vai sobressair no filme, mais do que a solidão, é provavelmente a incomunicabilidade”.



Dois anos mais tarde, em 1969, Bresson realiza “Uma Mulher Suave”, outro filme sobre a incomunicabilidade, compara Sémolué, adaptação de uma novela de Dostoievski, “Uma Criatura Gentil”, também traduzida para o português como “A Dócil” e “Ela Era Doce e Humilde”.



O crítico resgata em seu livro um depoimento de Maria Casarès em março de 58 para a Rádio-Televisão-Cinema sobre Bresson: “No set de filmagem, é o tirano em pessoa. (...) Ele nos matava com doçura, gentilmente. (...) Ao entrar no estúdio, nós abandonávamos tudo o que se assemelhasse a uma vida privada, a uma vontade própria, para arrastar perante o nosso doce tirano – pois ele era muito doce ainda por cima – um corpo, mãos, uma voz que ele havia escolhido”. Doçura e tirania, assim é o clima bressoniano por excelência, afirma Sémolué, lembrando que o texto e a temática de “Uma Criatura Gentil”, de Dostoievski, tinham tudo a ver com Bresson.



Em “Uma Mulher Suave”, o casal vai ao cinema ver o filme “Benjamin, O Despertar de um Inocente”, de Michel Deville. Diz o crítico: “‘Uma Mulher Suave’ propõe um fato comprobatório: o mundo moderno transformou em necessidades a agitação e a excitação. Bresson denuncia certos hábitos, como, por exemplo, a televisão em altas doses, enquanto escola de desatenção: o início da noite de núpcias: mais tarde, a espera solitária do marido ciumento tem por testemunha, na penumbra do quarto, a tela da televisão que projeta sobre a intimidade dos sentimentos a violência das corridas de automóveis e dos aviões carregados de bombas, todo o som e toda a fúria. Bresson ataca o que faz com que a vida contemporânea seja carente de naturalidade e até mesmo de natureza”.



Há um outro filme que circula na internet em que o crítico espanhol Santos Zunzunegui analisa a obra do mestre francês: “Abecedário Robert Bresson”. Zunzunegui lembra com muita clarividência que, em “Uma Mulher Suave”, Bresson promove uma espécie de acareação do cinema com outras artes, além da televisão. O casal vai ao cinema ver “Benjamin, O Despertar de um Inocente”, de Michel Deville, como já foi dito, e há nessa sequência um sutil confronto do “cinema” (o “teatro filmado”, ou seja, o filme de Deville) com o “cinematógrafo” (a arte cinematográfica). O casal vai também a uma exposição (artes visuais) e ainda ao teatro: assistem a uma apresentação de “Hamlet”, de Shakespeare. Trata-se de uma acareação delicada, generosa e muito sutil, sugestiva, mas que de algum modo tenta reafirmar a potência inovadora do cinematógrafo diante dessas outras possibilidades de se fazer arte.



Mas voltemos à análise de Jean Sémolué sobre “Uma Mulher Suave”: “A continuidade persiste sendo a principal preocupação de Bresson. Como sempre, ele tem muito cuidado com as transições. ‘Diga sim, diga, diga’, repete o pretendente à moça que lhe fecha a porta; sobre a imagem dessa porta vai se introduzindo o fundo sonoro da prefeitura, no momento das assinaturas do casamento, quando ela, efetivamente, já disse ‘sim’. Quando eles vão assistir a ‘Benjamin’, a música desse filme ressoa embora eles ainda estejam diante da fachada do cinema. Poderíamos multiplicar os exemplos desses sinais sonoros prenunciadores. Outros tipos de transição: passa-se, pelo movimento, das reproduções de um livro de arte aos quadros reais no Louvre; o buquê que a jovem mulher lança fora do carro anuncia a cena de ciúmes pelas flores oferecidas por um desconhecido”.



O crítico comenta que “o mundo exterior ilustra e alimenta as preocupações de uma heroína ansiosa em conhecer e aprender, o interesse que ela demonstra pela pintura, pelos livros, pela história natural, pela música”. Diz Sémolué: “A beleza do mundo e as múltiplas felicidades que esse mundo pode proporcionar estão presentes no filme mais do que qualquer outro de Bresson. A vida moderna corrói a vida interior com a sua potência de impacto; ela o alimenta com as suas riquezas. (...) As sequências situadas fora da loja e do apartamento jamais oferecem uma extensa variedade de formas e cores, contrastando com a intimidade do ambiente costumeiro. Encontro esperado de Bresson com a cor, encontro apaixonante! Com frequência, por exemplo, em ‘O Deserto Vermelho’, de Antonioni, a primeira utilização da cor por um autor acarreta uma redução da rapidez da ação. Bresson evita esse risco por meio do ritmo acelerado, da diversidade das escalas. A cor lhe possibilita tratar as roupas e os objetos como atores do drama, mostrar que o contexto cotidiano é só aparentemente insignificante, o que é uma constante em sua obra. Quanto à seleção dos detalhes, ‘Uma Mulher Suave’ é o mais requintado dos seus filmes desde ‘As Damas do Bois de Boulogne’ e antes de ‘Lancelot do Lago’”.



Sémolué diz que o apartamento se adapta às situações vivenciadas pelo casal. “Refúgio de doçura ou câmara de tortura, campo de batalha ou terreno de entendimento, o mesmo espaço abriga por vezes a paz, por vezes o inferno. (...) A construção de ‘Uma Mulher Suave’ funda-se no vaivém incessante do presente ao passado, conforme um estado de ânimo que Dostoievski define desta maneira no prefácio de sua novela: ‘Ela vagueia através dos cômodos e se esforça em descobrir um sentido no que acaba de ocorrer, em concentrar os pensamentos num só ponto’. Bresson detesta o flashback no que ele tem de artificial: vê nele um procedimento fácil que quebra a continuidade, aliás, exatamente como a representação do pensado, do sonhado. Mas aqui, longe de acarretar diversão e divergência, as passagens repetidas do presente ao passado garantem a convergência nos pensamentos do personagem tanto quanto no andamento do filme. Tudo direciona rumo ao interrogatório direcionado ao rosto da morta e rumo às perguntas que eram colocadas à viva. A história é revivida como uma investigação metódica, nos momentos decisivos do seu desenvolvimento cronológico. Esse monólogo-diálogo com a morta (...) e o desenrolar das imagens do passado, ao qual ela está associada, se entrelaçam numa só marcha em direção ao caixão, cujo fechamento é encerramento do filme”.



O crítico ressalta que a frase de Mefistófeles de Goethe (sobre o espírito que ‘às vezes pratica o mal, e às vezes pratica o bem’), usada para chamar a atenção da moça no início do filme, “contém todo o dualismo das relações posteriores entre eles e dá ao filme uma perspectiva espiritual”. Explica Sémolué: “O Marido é só perguntas, a mulher, só mudez e mistério. Odioso pelos olhares que, cheio de si, ele lança à esposa, esse homem parece, contudo, vulnerável. De uma ponta à outra do filme, ele bate de frente com uma morte incompreensível, contra os enigmas do passado que essa morte o obriga a reviver. Ele compreende ter feito aquela que amava uma prisioneira em vez de lhe garantir confiança, sua compreensão e sua ternura. Ele quis ‘tomar e não dar nada’. Ele limitava o casamento a prazeres físicos e a um convívio silencioso”.



Sémolué afirma que “Uma Mulher Suave” é, do princípio ao fim, “o filme da dúvida, das perguntas sem resposta”. “A ‘mulher suave’ é também a ‘mulher silenciosa’. Diante do apego do marido ao dinheiro, diante do ciúme dele, ela restabelece a distância do tratamento formal. E se afasta cada vez mais até o suicídio. (...) O olhar que ela pousa sobre o crucifixo ao entreabrir a gaveta, a maneira como coloca o xale nos ombros, como responde a Anna, dizendo que está feliz, como ela se aproxima do espelho, sorrindo a beleza que ele reflete, com sua loura ternura, com sua tez delicada – todos esses gestos, executados antes do gesto fatal, a entregam e a escondem. Não se pode reduzi-la aos seus atos. O essencial extrapola tudo isso. Em seguida, o fim do filme se junta ao início, o xale branco flutua no ar mais uma vez: a esse voo silencioso sucedem a imagem do caixão e, apesar da derradeira súplica do marido, os olhos fechados para sempre da morta, a seguir o barulho da tampa que se atarraxa. O segredo sobrevive aos sinais”.



Em 1971, dois anos depois do lançamento de “Uma Mulher Suave”, Bresson realiza “Quatro Noites de Um Sonhador”, que forma uma espécie de díptico com o filme anterior. Analisa Jean Sémolué: “Ambos os filmes adaptam novelas de Dostoievski; ambos se passam em Paris, nos dias atuais; ambos mostram as dificuldades amorosas de dois seres jovens.” O crítico lembra que a mesma novela de Dostoievski, na qual “Quatro Noites de um Sonhador” é inspirada, “Noites Brancas”, já havia inspirado Visconti a fazer um filme com o mesmo nome da novela do grande escritor russo. “Se ‘Uma Mulher Suave’ e até ‘Mouchette’ já desenvolviam a temática da incomunicabilidade, em ‘Quatro Noites de um Sonhador’, cujo essencial é centrado em confidências, desenvolve-se a temática, senão verdadeiramente da compreensão, pelo menos do entendimento”, compara.



Três anos depois, Bresson finalmente consegue filmar um projeto que ansiava realizar há décadas: “Lancelot do Lago”, lançado em 1974. O cineasta católico, que não gostava de ser chamado de jansenista (na verdade, não gostava da “frieza” que o rigor moral da palavra encerra), finalmente conseguiu filmar a busca do Santo Graal, o cálice de Cristo, um dos mitos mais emblemáticos do cristianismo. Durante 22 anos, lembra Sémolué, em suas entrevistas, Bresson sempre falava desse projeto, que foi para ele uma espécie de “filme inalcançável”, segundo o crítico. Após a realização de “Diário de um Padre”, em 1951, tentou rodar “Lancelot do Lago”, mas foi obrigado a adiar a ideia diversas vezes, só conseguindo viabilizar o projeto em 1973.



Disse Bresson sobre o projeto de rodar “Lancelot” na época do lançamento de “Diário de um Padre”: “Quanto à magia decorativa desses contos da Távola Redonda, procuro introduzi-la nos sentimentos”. O crítico resgata em seu livro outro trecho da mesma entrevista: “Os cenários? Todos reais. Nada de estúdio. Já tenho meu castelo – meus dois castelos – e minha floresta”. Após o lançamento de “Pickpocket”, Bresson declarou: “Eu suprimi o pitoresco. Queria encontrar a época intuitivamente. E que esse filme fique próximo de nós pelos sentimentos, sem anacronismos demais”. Após o lançamento de “A Grande Testemunha”, o crítico lembra que Bresson mais uma vez mencionou o projeto de “Lancelot”: “Eu vou tentar transferir essa magia para a esfera dos sentimentos, isto é, mostrar como os sentimentos modificam até o ar que se respira”.



O mito do Santo Graal é uma velha lenda conhecida em toda a Europa. Explica Sémolué: “Um cálice mágico, identificado como o cálice da última ceia, que teria sido também o cálice com que José de Arimateia recolheu o sangue de Cristo na cruz. O Graal representa portanto, ao mesmo tempo, o mistério da Encarnação e da Redenção. É também o símbolo da Graça”. Para o crítico, há uma espécie de hiperrealismo sonoro no filme: o sangue escorre como mijo. Ele afirma que Bresson pensou “Lancelot” como uma tragédia e isso já é anunciado no início do filme em que a desgraça é predita pela camponesa que interpreta os sinais. Ainda no início, um plano-detalhe de um olho de cavalo como que temendo a morte do seu dono. Sémolué inclui ainda em seu livro um trecho de um texto de Julien Gracq, escritor amigo de Bresson e autor da peça “O Rei Pescador”, grande conhecedor do mito do rei Arthur. “‘Lancelot do Lago’: a materialização sem qualquer complacência feérica, quase pobre até, no seu despojamento, de uma história que jamais teve um modelo, nem um lugar real, que desde o nascimento nunca conheceu outro clima senão o do mito, nem outra morada senão as asas da imaginação”.



Em 1977, a realização de um filme muito impactante, talvez um dos filmes do mestre francês menos analisados pela crítica cinematográfica, de maneira geral, mas trata-se de uma obra seminal e que é uma espécie de vaticínio do mundo em que estamos vivendo: “O Diabo Provavelmente”. O crítico explica a origem do título narrando uma passagem do próprio filme: “Após um debate sobre usinas nucleares, em que um conferencista alega que elas não oferecem perigo, Charles, o jovem suicida, conversa com Michel sobre o debate num ônibus. ‘Quem está manipulando a gente disfarçadamente?’. Um homem responde: ‘O diabo provavelmente’. O motorista se vira; barulho de colisão, o motorista desce; concerto de buzinas cada vez mais enfurecidas”. Sémolué comenta que o título de “O Diabo Provavelmente” é introduzido “de viés” por um personagem ocasional, acidental.



Disse Bresson sobre o filme: “Era a primeira vez que eu sentia necessidade de expressar uma certa revolta contra o que está ao meu redor, da maneira mais direta (...) As pessoas não querem ser levadas a um estado de inquietação. O que acontece, e que se esconde delas, é monstruoso. Quando se vai às fontes, percebe-se algo apavorante. As civilizações são mortais, obviamente, mas agora se trata do planeta inteiro. Trata-se da vida”.



“O ‘provavelmente’ do título insiste no aspecto abafado, dissimulado de fato, da tomada de posse diabólica”, analisa Jean Sémolué. “Bresson conhece e nos relembra a frase de ‘O Idiota’ segundo a qual ‘a negação do diabo é uma ideia francesa, uma ideia frívola’. Num trecho de ‘Os Irmãos Karamazov’, Ivan e seu pai discutem em termos muito próximos do título do filme e da passagem que o explica na ação: ‘Quem, afinal, zomba do mundo?’ – ‘O diabo provavelmente’, declara Ivan fazendo chacota. ‘O diabo existe?’ – ‘Não’”, Sémolué faz um inventário de outras influências implícitas de Dostoievski na obra de Bresson.



Para o mestre francês, em “O Diabo Provavelmente”, “o mal reside numa proliferação monstruosa, na aceitação do desperdício, na desistência generalizada”, analisa o crítico. “Na sequência da igreja, em que a caixa de moedas é roubada, Bresson usa mais uma vez Monteverdi: ‘Ego Dormio’”, ressalta Sémolué. Palavras do próprio Bresson: “Eu estava interessado no encontro sonoro das moedas caindo no chão e da grande música religiosa”.



Para o crítico, trata-se de um “filme fúnebre no sentido pleno da palavra”. “‘O Diabo Provavelmente’ desenvolve uma cumplicidade com a noite, um entendimento com a morte, desafiadora e fascinante, muito diferente do impulso suicida em ‘Mouchette’ e em ‘Uma Mulher Suave’. Primeiramente, nós a adivinhamos, junto com Alberte e Michel, graças a sinais exteriores: o frasco de cianureto; a frase recopiada dos ‘Irmãos Karamazov’: ‘Quando irei me matar, se não agora?’. Essa frase se encontra num monólogo no interior de Dimitri, no decorrer do capítulo ‘Delírio’; quanto a Charles, ele não delira”, compara o crítico. A sequência final de “O Diabo Provavelmente” é puro Bresson: o jovem Charles paga a um outro rapaz para assassiná-lo e tudo se desenrola num cemitério com uma essencialidade e uma crueza epifânicas, de tirar o fôlego, mas sem nenhum tipo de artifício ou penduricalho cinematográfico, da forma mais simples e direta possível. A morte como único aceno possível de Deus.



Em 1983, o lançamento do último filme do mestre francês: “O Dinheiro”. Segundo Jean Sémolué, Bresson faz uma adaptação da novela “O Falso Cupom”, de Tolstoi, “mas empurra os personagens para o lado de Dostoievski e simplifica, à francesa, as linhas da narrativa, que situa, por sinal, na França contemporânea”. Diz o crítico: “Às situações propostas por Tolstoi, Bresson confere uma violência dostoievskiana. O massacre final a machadadas se inspira em ‘Crime e Castigo’, de Dostoievski. A configuração da frase final lembra a confissão de Raskolnikov: ‘Fui eu que os matei a machadadas, para roubá-los, a velha mulher do funcionário e sua irmã Lisaveta’”, analisa Sémolué, inventariando mais influências implícitas de Dostoievski na obra de Bresson. “Em ‘O Dinheiro’, a mulher (cujo nome não se conhece, como que para sinalizar a sua vontade de se anular) se cala no momento fatal; sua frase fundamental, dita a Yvon na primeira noite: ‘Se eu fosse Deus, se dependesse só de mim, eu perdoaria todo mundo’, é a retomada de uma frase de Gruchenka em ‘Os Irmãos Karamazov’: ‘Se eu fosse Deus, perdoaria todo mundo’”, afirma Sémolué nessa profunda garimpagem da influência de Dostoievski nas entranhas do processo de criação do mestre francês.



O crítico comenta que, com “O Dinheiro”, Bresson, “ao mesmo tempo em que permanece fiel ao ritmo e ao espírito da novela de Tolstoi, oferece a sua mais livre e mais pessoal adaptação”. “O ritmo e processos narrativos fazem de ‘O Dinheiro’ o mais audaciosamente experimental dos filmes de Bresson”, garante Sémolué. “Quanta elegância na maneira como aparecem, desaparecem, reaparecem os personagens! Em ‘O Dinheiro’, ainda mais do que em ‘A Grande Testemunha’, caminha-se, ao que parece, ‘ao acaso’. ‘A vida é quase que inteiramente feita de acasos’, declarou Bresson a respeito do seu filme”, lembra o crítico, ressaltando que o cineasta brinca com os personagens e com os espectadores, “criando linhas de encontros e desencontros entre os personagens costurados pelo acaso”.



Sémolué resgata uma frase de Espinoza ao se referir à maneira como Bresson compõe seus quadros com objetos: “São os objetos que fazem com que percebamos. Somos afetados em graus diferentes por cada um deles e conforme a proporção de repouso e de movimento de que eles se compõem”. Um dica, diga-se de passagem, para qualquer diretor de arte. Como um pintor, Bresson pensava a tela de cinema como uma superfície a cobrir com volumes, texturas, linhas, movimentos e silêncios. “Construa seu filme sobre o branco, sobre o silêncio e sobre a imobilidade”, uma de suas frases mais clarividentes do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”. Em 83, em entrevista a Le Nouvel Observateur, Bresson lembrou um de seus princípios: “Quanto ao som, ele fornece o espaço, o relevo. Ele chega e a tela se cava, abrindo a terceira dimensão. Enquanto a música aplaina a imagem, a torna uma superfície”. Para o mestre francês, o som é 3D em seu sentido mais pleno, mais linguístico, mais essencial.



O crítico lembra que “O Dinheiro” não comporta música nenhuma, com exceção da cena em que o pai de uma das personagens, antigo professor de piano que virou alcoólatra, toca a “Fantasia Cromática”, de Bach; “mas um copo de vinho, que ele coloca perto demais da beirada do piano, oscila, cai, se espatifa: o barulho expulsa a música, mas se torna música”, garante Sémolué. “O filme se coloca sob o signo da angústia; daí o papel primordial do som, dos barulhos de carro dos créditos ao silêncio do último plano, escancarado. O massacre final é mais ouvido do que visto, marcado pelos gemidos do cão desvairado; essa sequência é ao mesmo tempo a mais frenética e uma das mais despojadas entre as que Bresson filmou”, afirma o crítico. Para ele, “a fragmentação dessa obra do mestre francês crepita e vira ritmo: cada imagem, cada som espera ou desperta uma recordação”.



Disse Bresson sobre “O Dinheiro”: “O mal despenca, vertiginoso. Por uma pequena falta – passar adiante uma nota falsa, que importância tem isso aos olhos das crianças? Surge o demônio”, declarou a Le Nouvel Observateur. Sémolué lembra que essa observação de Bresson vincula “O Dinheiro” ao filme anterior: a circulação do dinheiro já parecia demoníaca em “O Diabo Provavelmente”. Imagens de dinheiro: carteiras liberando ou recusando seu conteúdo, gavetas de caixas exibindo dinheiro com um golpe seco, caixas eletrônicas expelindo notas em sequência. “O dinheiro se instala e circula nas imagens do filme como na nossa vida. Desde o princípio, o dinheiro falseia as relações já no instante em que as cria”, analisa o crítico.



Sémolué comenta que, em entrevistas, Bresson lamentou o fato de, em “O Processo de Joana d’Arc”, ter afrouxado seus princípios, que se tornaram uma regra a partir de “Um Condenado à Morte Escapou”: “Eu tentei usar atores dessa vez. Mesmo quando se trata de uma só linha, o que sai é uma coisa diferente do texto, e eu quero só o texto”, confessou o mestre francês. Para um ator, é preciso não ser mais si próprio, é preciso ser um outro. Bresson queria que seus modelos fossem eles mesmos.



O crítico resgata um depoimento de Pierre Klossowski, intérprete do negociante de grãos em “A Grande Testemunha”: “A questão não era nos tratar como objetos inconscientes, deslocados arbitrariamente, mas resgatar o que era natural em cada um de nós, nos livrando das entonações falsas, dos gestos deformados, de todas as nossas escórias acumuladas pelos hábitos, pelas convenções. É uma operação de despojamento muito difícil e muito instrutiva que ele, de forma magistral, nos ajudou a realizar como seus intérpretes”.



Sémolué lembra de Tarkovski que, no livro “Esculpir o Tempo”, constata que quando os atores “ficam submetidos a convenções e a clichês teatrais”, os filmes envelhecem depressa, ao passo que “os atores de Bresson jamais ficarão com esse aspecto fora de moda, aliás, seus filmes tampouco”. Para esse grande cineasta russo, Bresson tira a fantasia do teatro do cinema, para tomar partido dos seres e das coisas, fazer, bro, tar sua qualidade própria, sua “lição”. No documentário “O Caminho para Bresson”, Tarkovski afirma que o mestre francês elevou o cinema à dimensão das grandes art, es da Antiguidade. No Festival de Cannes de 1983, Bresson e Tarkovski estiveram juntos na competição: o francês com “O Dinheiro” e o russo com o também belíssimo “Nostalgia”. Os dois dividiram o Prêmio Especial do Júri e receberam o prêmio das mãos de ninguém menos que Orson Welles, que, segundo dizem, detestava os filmes de Bresson. Pode não ser verdade, mas, como diria John Ford, se a lenda for mais forte que o fato, imprima-se a lenda. Há quem diga que uma vez levaram Orson Welles para ver “O Processo de Joana d’Arc”, de Bresson, num cinema de Paris e ele se levantou após o início da projeção. Pode ser mais uma das histórias fantasiosas que envolvem o mundo do cinema, mas, de todo modo, não deve ser muito improvável que um cineasta como Orson Welles, que também foi um grande ator, tenha lá tido bastante resistência com o estilo do mestre francês, que, como já foi dito, para fugir do “teatro filmado”, passou a trabalhar com modelos num set de filmagem.



Mas, voltando ao livro de Jean Sémolué, ele resgata mais um trecho de “Esculpir o Tempo”, de Tarkovski: “Lembrem-se de ‘Mouchette’! Será que se pode dizer por um instante sequer que a intérprete principal parece se preocupar em saber se o espectador repara bem em toda a ‘profundeza’ dos acontecimentos que ela está vivenciando? Será que ela ‘mostra’ aos espectadores a que ponto ela está ‘mal’? Ao contrário, ela dá até a impressão de nem desconfiar de que a sua vida interior possa se tornar um objeto de observação, e servir como prova. Ela existe, ela vive, absorvida e concentrada num mundo fechado. É o motivo do fascínio que ela exerce”.



Diz o crítico: “Como é o mesmo olho que vê, Bresson recusa a mudança de objetiva e mantém a unidade usando constantemente a objetiva de 50 milímetros, a mais alheia ao pitoresco, ao relevo”. Sémolué lembra que “Bresson mostra o efeito antes da causa não para introduzir um lance teatral, mas para levar o espectador a partilhar a expectativa de um personagem envolvido numa ação, requisitado pelo que ele vê”. O crítico cita novamente o historiador da arte Henri Focillon para explicar o título até certo ponto escalafobético do seu livro: “A arte começa pela transmutação e continua pela metamorfose”. Palavras de Jean Sémolué: “Do seu lado, Valery via na dança e, sem dúvida, também na poesia, ‘o ato puro das metamorfoses’. A expressão convém aos filmes de Bresson. ‘Ato puro’, aquele que fragmenta para dar a ver. ‘Metamorfose’ porque a arte não é reprodução morta, mas construção viva. Como escreveu Bresson em ‘Notas sobre o Cinematógrafo’: ‘Não há arte sem transformação. Sem mudar nada, que tudo seja diferente’. Num filme de Bresson, cada elemento, cada engrenagem age e reage para que seja levado a bom termo o ato puro das metamorfoses”.



O crítico lembra que Bresson fez dois filmes baseados na obra de Georges Bernanos: “Guardar silêncio, que expressão estranha! É o silêncio que nos guarda”, a frase mais bressoniana de Bernanos no livro “Diário de um Padre” não está no filme, ressalta Sémolué.



Projetos de Bresson que não foram realizados: “Santo Inácio de Loyola”, com diálogos de Julian Green; “A Princesa de Clèves”; “A Grande Vida”, baseado em novela de J. M. G. Le Clézio, “em que o insólito da juventude moderna (captado em ‘Quatro Noites de um Sonhador’ e ‘O Diabo Provavelmente’) teria virado insolência”, segundo Sémolué; e “O Gênesis” (“La Gênese”), projeto tantas vezes sonhado, mas que acabou alimentando os demais, diz o crítico. Esse último projeto iria ser rodado na Itália, mas, segundo boatos, Bresson acabou demitido pelo produtor Dino de Laurentiis quando ouviu do mestre francês as suas ideias para a sequência do dilúvio: Bresson só queria filmar as pegadas dos animais, não tinha a intenção de mostrar nada explicitamente. Ele tentou retomar o projeto depois de realizar “O Dinheiro”, mas não conseguiu.



Sémolué resgata em seu livro um depoimento de Anne Wiazemsky, a jovem de “A Grande Testemunha”, neta do escritor francês François Mauriac (Prêmio Nobel de Literatura de 1952), que, após trabalhar como modelo no filme de Bresson, se tornou atriz (atuou em filmes de Godard, com quem se casou, Pasolini, Marco Ferreri e Philippe Garrel) e depois virou uma escritora bastante conhecida na França. Palavras de Anne Wiazemsky sobre o mestre Bresson: “Mais do que ninguém (...) sabe captar esse momento muito breve situado na saída da infância; não se é ainda uma moça de verdade, um rapaz de verdade. Isso deve durar alguns meses de vida, na vida da gente. E ele, é esse momento exato que lhe interessa, é esse momento exato que ele nos mostra”.



O crítico conta em seu livro algumas curiosidades sobre os filmes de Bresson. “Em ‘Um Condenado à Morte Escapou’, os alemães escalados para desempenhar o papel do oficial, que pede a Fontaine a sua palavra de que não tentaria fugir de novo, não satisfaziam Bresson, incomodado com o sotaque deles. Esse sotaque desviava a atenção das palavras pronunciadas. Finalmente, foi a bela voz – profunda e aqui metálica – do próprio Bresson, que diz: ‘Então, tenente Fontaine, você digeriu o seu fracasso?’. (Assim como era a sua mão que escrevia, em ‘O Diário’, não a do pároco de aldeia)”, revela Sémolué. Mais: “Assim como é a voz de Bresson, não a do homem que monta o burro, que pronuncia a frase ‘jurídica’ que impressiona Arnold”.



O crítico faz uma lista de frases que se repetem nos diálogos de Bresson:



“Você é engraçado (a).” (“As Damas do Bois de Boulogne”, “Pickpocket” e “Uma Mulher Suave”).



“A minha decisão está tomada.” (“Pickpocket” e “Uma Mulher Suave”).



“Eu tive tanto medo. Medo de quê? Medo.” (“Anjos do Pecado”, “As Damas do Bois de Boulogne”, “Pickpocket”, “Mouchette” e “A Grande Testemunha”).



“É Verdade?”. (“As Damas do Bois de Boulogne” e “Um Condenado à Morte Escapou”).



Sémolué inclui em seu livro um belíssimo texto de Bresson dedicado a um grande amigo, o pintor Pierre Charbonnier, cenógrafo de nove filmes do cineasta francês (entre eles, o seu primeiro filme, o curta “Assuntos Públicos”). Escreve o mestre francês: “Esses objetos, essas coisas (das quais você não tira nem sua grandeza nem sua originalidade) que enchem as suas telas não falam. Diríamos que elas estão escutando. Há um suspense. Eles nos reinserem na nossa solidão”.



O crítico lembra a definição de “destino” para Jorge Luís Borges: “Nome que damos ao jogo infinito e incessante de milhares de causas entremeadas”. Com seu estilo rigoroso, sempre aberto às surpresas do inesperado, Bresson queria frequentar esse universo de acasos e predestinações que ronda a vida de todos nós.



Sémolué comenta que o mal é contagioso feito uma doença em “O Dinheiro”. “A violência e a injustiça triunfantes, eis a cara privilegiada do mal”, afirma o crítico. Para ele, “O Diabo Provavelmente” mostra um mundo entregue ao desperdício, condenado à queda. “Seria o mal a parte que cabe a um mundo sem Deus, ou pelo menos a um mundo onde Deus não se manifesta? Um cristianismo vivo alimenta os primeiros filmes de Bresson”, analisa. “Mas a seguir só se encontra, quando muito, um ritual longínquo, sem objeto, sem resultado”, conclui, lembrando Pitágoras: “Vivo, já que morro”.



Para Sémolué, nos filmes de Bresson, “a solidão e a solidariedade são os dois componentes de uma ‘moral’, assim como o acaso e a predestinação, os dois grandes componentes de uma ‘metafísica’”, filosofa. “Bresson declarava, sobre ‘Pickpocket’, que desejava tornar palpável o fato de que os caminhos que tomamos nem sempre nos fazem chegar à nossa destinação, ou melhor, à destinação que prevíramos. Nos seus filmes, os debates entre a consciência e a graça, entre a vontade e a sorte, recortam a lição fundamental da tragédia, lembrada por Eurípedes no fim de ‘Medeia’ (e de outras duas peças): ‘O esperado não se realiza, e ao inesperado a divindade abre passagem’. Para os trágicos gregos, para Racine, para o jansenista, ‘o destino é uma ironia superior’. Todos os passos de Édipo e de Fedra ensaiam para se afastar do próprio destino e se tornam passos que os aproximam dele”.



A tragédia grega, primeira morada de qualquer dramaturgo, ao lado da obra de Dostoievksi, são uma espécie de pano de fundo conceitual, arquetípico, nos filmes de Bresson, sempre em busca da face mais profunda e epifânica da natureza humana. É interessante lembrar a construção das sequências que antecedem o suicídio de Mouchette e “Lancelot do Lago”, concebido como uma tragédia pelo mestre francês.



No documentário “O Caminho para Bresson”, os dois jovens cineastas que assinam o filme, Jurriën Rood e Leo de Bôer, perseguem seu ídolo octogenário (então com 82 anos; Bresson nasceu em Bromont-Lamothe, França, no dia 25 de setembro de 1901 e morreu em 18 de dezembro de 1999, com 98 anos) durante o Festival de Cannes em 1983. Tentam uma entrevista a todo custo e por fim conseguem após sucessivos telefonemas para o quarto do mestre num luxuoso hotel do balneário francês. Bresson concorda em responder a apenas uma pergunta. Eles se encontram. Um dos jovens cineastas questiona uma possível contradição na obra do mestre: uma espécie de atrito, um paradoxo entre o pessimismo e a beleza nos seus filmes. Bresson responde: “Você está confundindo pessimismo com lucidez. E a lucidez não tem que ser pessimista. A moral é uma coisa maior. Eu não tenho uma moral sombria. A tragédia grega lhe parece pessimista?”, o mestre devolve a pergunta. “Eu me considero mais lúcido do que pessimista”, continua Bresson. “Não sei direito o que vai acontecer, mas me parece difícil eleger temas que não sejam dessa nossa época. Não posso fugir da minha época. O mundo está seriamente ameaçado e mais vale vê-lo com lucidez e não com pessimismo”, pondera o mestre, afirmando em seguida que não se considera pessimista e que a busca pela beleza e pela lucidez não tem nada de contraditória. “Não vejo nenhum conflito, em absoluto”, assegura. “Mas, no cinematógrafo, a beleza tem que ser nova. Se o cinematógrafo se converte em arte, tem sua própria beleza, tem que usar esses dois extraordinários instrumentos, que são a câmera e o gravador, combinados, para escrever algo na tela. Temos que usar esses dois aparelhos novos para criar algo novo. E esse novo elemento tem que ser belo, se você tem um ideal de beleza sobre as pessoas e as coisas em geral”.



“O senhor mudou ao longo de sua carreira?”, pergunta o jovem cineasta. “Espero ter evoluído”, confessa Bresson. “Esse último filme (‘O Dinheiro’) é algo novo para mim. Tentei fazer coisas concentradas, rápidas e novas, mas com espontaneidade e liberdade. Assim é como eu sinto, ou seja, assim o faço. Se não for bom, é uma pena. Se for bom, bravo. Assim é como trabalho. Lamentavelmente, grande parte do público de cinema prefere ver teatro filmado. Querem as pessoas inteiras, não só seus rostos, suas mãos, seus cotovelos ou suas pernas. Mas na rua o que vejo são pernas que caminham. Essa é a minha visão de um boulevard de Paris. O público não vê a beleza dessas pernas nem de uma pessoa que vai aparecendo pouco a pouco até tornar-se inteira na imagem. Não sente nada ao ver essas imagens. Espera um diálogo explicativo que não está aí. O que explica a cena é a combinação de imagem e som”, diz.



O jovem cineasta pergunta se o público compreende os filmes do mestre francês. “Não, se sempre lhes mostram filmes que são teatro filmado”, lamenta Bresson. “O público quer ver atores que atuem, seu tom, sua voz, sua interpretação. Se não há atuação, nem atores conhecidos, só veem um vazio. Eu os entendo muito bem, mas o cinema deve revolucionar e pode chegar a ser algo magnífico. O cinema tem que evoluir, e isso é tudo”, ele se levanta, encerrando a entrevista, mas o entrevistador insiste: “O senhor daria um conselho a um jovem cineasta?”. Bresson concorda em responder a essa última pergunta e avisa que terminará o seu depoimento com uma bela frase de Stendhal: “Foram as outras artes que me ensinaram a escrever”. No encerramento do Festival de Cannes naquele ano, 83, ao lado de Tarkovski, com quem dividiu o Prêmio Especial do Júri, entregue por Orson Welles, como já foi dito, o mestre francês prefere o silêncio.



É emocionante ver esse que deve ser um dos últimos depoimentos de Bresson, um artista absolutamente fiel a si mesmo, aos próprios princípios, ao próprio rigor. Um veterano cineasta eternamente jovem, condenado a ser contemporâneo, ou melhor, tentando vislumbrar fagulhas de atemporalidade na sua contemporaneidade mais profunda, mais anímica, mais coerente e mais emergencial, tentando desesperadamente falar do seu próprio tempo.



Bresson fez o seu primeiro filme em 1934, o antes mencionado curta-metragem “Assuntos Públicos”, com atmosfera farsesca, muito teatral, construído como um programa de rádio operístico, em que tentou fazer uma sátira às convenções sociais. Trata-se de um filme afetado, recitado, inundado de música, transbordando gags em cerimônias públicas de políticos. Dado como desaparecido e também retirado do próprio currículo, esse curta é uma espécie de ensaio de tudo o que Bresson não queria na arte cinematográfica, mas tem uma estranha organicidade como anti-modelo da sua busca artística rigorosa, despojada e minimalista.



O mestre francês não foi apenas mais um contador de histórias no universo da arte cinematográfica: ele criou uma sintaxe nova que até hoje é moderníssima e vem influenciando gerações desde então. De Godard a Paul Schrader, que escreveu um longo ensaio sobre Bresson: “Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson e Dreyer”. De Truffaut, Rohmer e Louis Malle a nomes mais recentes como Bruno Dumont, que já negou em entrevistas a influência do grande mestre francês, mas que talvez seja o diretor mais bressoniano do cinema contemporâneo. Dos cineastas do Dogma 95 a Abbas Kiarostami, outro artista egresso das artes plásticas (o grafite) e que, no filme que fez com dez lições sobre a arte cinematográfica, cita Bresson três vezes, embora já tenha declarado que ache a atuação dos modelos do mestre francês “artificial” e que tenha optado por atores não profissionais, à maneira dos cineastas neorrealistas. Bertolucci, que homenageou Bresson em “Os Sonhadores”, com a bela e triste cena final de “Mouchette”. Ingmar Bergman com “Luz de Inverno”, de 63, uma espécie de refilmagem nórdica de “Diário de um Padre”. Joaquim Pedro de Andrade com “O Padre e a Moça”. A cantora e compositora Patti Smith chegou a declarar que o seu grande guru é Robert Bresson. A escritora Susan Sontag também escreveu sobre a obra do mestre francês.



O estilo de Bresson é único, irreproduzível. No cinema contemporâneo, em que a ficção propriamente dita parece precisar de muletas documentais para legitimar a “veracidade” das imagens que estão sendo criadas, Bresson está mais “moderno” que nunca, sobretudo a aparência documentária dos seus planos aplainados, condensados, sempre em estado de contenção, de espera e de reserva. Godard costuma dizer que o mestre está para o cinema francês como Dostoievski está para o romance russo e Mozart, para a música alemã. Para finalizar, algumas frases de Bresson extraídas do livro “Notas sobre o Cinematógrafo”:



“Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É estabelecer entre pessoas e coisas que existem e tais como elas existem, novas relações”.

“Sua imaginação vai mirar menos os eventos que os sentimentos, querendo esses últimos os mais documentais possíveis”.

“O futuro do cinematógrafo pertence a uma raça nova de jovens solitários que filmarão com seu último centavo e sem se deixar enganar pelas rotinas materiais do ofício”.

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