Críticas


FEBRE DO RATO, A

De: CLAUDIO ASSIS
Com: IRANDHIR SANTOS, MATHEUS NACHTERGAELE, NANDA COSTA, CONCEIÇÃO CAMAROTI
21.06.2012
Por Nelson Hoineff
DE CULTURA E VÍSCERAS

Orson Welles costumava dizer que não gostava de ir ao cinema. Os fatos podem não comprovar isso, mas a frase de Welles servia de metáfora à importância do repertório adquirido, importância que ele considerava estreita, para a criação cinematográfica. Welles fez Cidadão Kane aos 26 anos, não tinha mesmo visto muita coisa. Bem, Glauber fez Deus e o Diabo aos 24 – e essa lista vai bem longe.



Quando Glauber colocou as Bachianas em Deus e o Diabo, era a primeira vez que ouvia a composição de Villa-Lobos. Mas colocou, e deu no que deu. A importância tão relativa do repertório me passou pela cabeça quando vi Deus e o Diabo pela primeira vez, em 1964. Eu era uma criança e me perguntava – de onde veio tudo isso? A mesma questão me ocorreu ao ver agora A Febre do Rato. O diretor Claudio Assis fez filmes muito bons antes – tanto Baixio das Bestas quanto Amarelo Manga – mas há em seu novo filme uma complexidade bem maior, uma forma muito mais sólida de olhar horizontalmente para seu mundo e seus personagens. Mas principalmente uma notável maturidade na sua maneira de se expressar.



De onde vem tudo isso? Com aquela turma do cinema novo, que Claudio não conheceu, ele tem uma notável similaridade, que começa com o próprio Glauber. Isto se dá em algo tão prosaico como a forma de ele mesmo se comportar em público, fora dos filmes (ambos são desafiadores, incômodos, agressivos, inesperados) ou no combustível que os dois utilizam para alimentar os filmes que fazem. Assis, como Glauber, é visceral. O que ele coloca na tela parece menos o reprocessamento de algo já existente do que o grito que nasce de um dom, completamente natural, de se expressar pelo cinema.



Glauber mesmo diria “não blasfema” - mas em todas essas décadas não me lembro de um diretor brasileiro com um vetor glauberiano tão forte. De onde, repito, vem tudo isso? Assis cita muitos clássicos em A Febre do Rato - entre eles o próprio Terra em Transe – mas é difícil determinar a consciência que tem disso. Cita mesmo, ou faz da mesma forma? A sua maneira de dizer o que tem a dizer é muito mais natural e espontânea do que erudita – e o cinema que constrói é poderoso, verdadeiro, inquietante. Continua e permanentemente extraordinário.



O diretor se confunde com seus personagens - com os personagens de todos os seus filmes – ou então faz a mesma coisa pela via inversa: vai buscá-los no universo que conhece e domina. Os manguezais de Recife compõem o microcosmo perfeito para o embate entre o falso e o verdadeiro, o escamoteado e o real. Não há um meio termo possível, ou por outra: o meio termo é a redenção à hipocrisia, que Claudio combate num universo povoado pela maconha, o pó, o sexo vociferante, a sensualidade gritada. O sexo verdadeiro, feroz, está no epicentro de seu universo. Se ele não for convenientemente tratado, todo esse universo desaba. E nisso, como em muitas outras coisas, Assis é magistral.



Há nos seus filmes um princípio a ser defendido. É compreensível, então – e até desejável- que o diretor aja nesses momentos, fora dos limites da tela, como seus personagens: bebe uma dose a mais, insulta indistintamente as novelas da Globo e cineastas estabelecidos, como Walter Salles. Ele propõe assim uma ação permanente, como a de Zizo (Irandhir Santos), o poeta inconformista que povoa todos os movimentos de seu filme e busca a adesão de seu publico como o poeta busca o dele. Zizo está por inteiro em Assis, um artista inconformado com as formas dominantes, as linguagens e os mecanismos de produção hegemônicos. É reconfortante, portanto, para dizer o mínimo, que para Assis os seus filmes não se esgotem nas telas.



Se não há, por parte do diretor, todo esse repertório, temos que tentar entender por que a narrativa em A Febre do Rato é tão sofisticada. Por que cada um dos planos utilizado na sua construção é tão bem composto e expressivo, por que todos os intérpretes (Irandhir, Nanda, Matheus, Gladys, Cazaré) se transformam em armas tão poderosas, sem recitar dogmas prosaicos. Por que, em A Febre, são tão espontâneos e reais. Por que se exprimem de uma forma que não conseguiriam fazer na televisão em ou muitos outros filmes. Por que, enfim, são tão poderosos instrumentos de guerra na defesa de um cinema que exale de forma paradigmática verdade e substância.



A resposta maios provável é porque ali existe um diretor munido de uma proposta muito forte, clara, consistente e um talento fora do comum para expressá-la. A Febre do Rato não tem um só dos vícios de um tipo de cinema (paulista, mas nem sempre) que vende a aparência de bem realizado e na verdade se assemelha a um interminável anúncio de refrigerante. O que A Febre tem é uma oposição explicita a isso. Mas essa oposição não se apresenta como um punhado de imagens mal resolvidas e de textos grosseiramente escritos. Exatamente pelo contrário. A Febre do Rato é estiloso plano por plano – o que certamente se dá também graças a colaboração de Walter Carvalho, um dos melhores e mais conscientes diretores de fotografia do Brasil e do mundo. E também a uma perfeccionista direção de arte de Renata Pinheiro e à impressionante música de Jorge Du peixe que Assis potencializa cena por cena.



O que estamos é diante de um filme de combate mas também um filme singular e profundamente contemporâneo. O produto de um artista que até agora, e desta vez ainda mais do que das outras, vem atuando como um obstinado inimigo da subserviência a formas dramatúrgicas idiotizantes e criador de um cinema explosivo e renovador.



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