Críticas


HISTÓRIAS QUE SÓ EXISTEM QUANDO LEMBRADAS

De: JULIA MURAT
Com: SÔNIA GUEDES, LISA FÁVERO, LUIZ SERRA
08.07.2012
Por Carlos Alberto Mattos
JULIA MURAT E O NEOARCAÍSMO

Repetidamente, em imagem recorrente no filme, Madalena caminha em direção à câmera. O passo da velha senhora é lento, e a câmera espera, pacientemente, que ela chegue do plano geral até o close. Às vezes é ela quem traz a luz da cena na mão – um lampião a querosene que pouco a pouco vai iluminando o ambiente e clareando a tela à medida que ela se aproxima. Essas imagens de Histórias que Só Existem Quando Lembradas exprimem toda uma atitude da realizadora Julia Murat diante de seus personagens: manter o olhar fixo para eles, assim como quem evita tremer para não estragar a foto, e esperar pelo que seria o ritmo natural deles. Não fazer nada que possa soar como uma intervenção exógena na cadência compassada da vida daquelas criaturas.



Histórias... , premiado em vários festivais no exterior e recebido com louvor por muitos críticos brasileiros, insere-se numa linhagem contemporânea que já está a merecer a atenção dos estudiosos. Trata-se do que vou chamar aqui de neoarcaísmo. São realizadores jovens, ou pelo menos não veteranos, que se debruçam sobre personagens idosos vivendo hábitos antigos em lugares perdidos no tempo. Assim é Girimunho, de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, com suas senhoras de São Romão, no interior de Minas. Também em Minas foi feito o documentário Terra Deu, Terra Come, de Rodrigo Siqueira, centrado no mestre funerário Pedro de Alexia, de 81 anos. Petrus Cariry não foge muito a esse modelo com seu Mãe e Filha, rodado na fantasmal Cococi, sertão do Ceará. Nem mesmo o inédito Sudoeste, de Eduardo Nunes, deixa de dialogar com essa busca de transcendência nos ermos brasileiros, no caso a Região dos Lagos fluminense.



Une esses filmes, além das locações distanciadas no espaço e no tempo, a presença da morte como coisa muito viva dentro das tramas. É o que acontece com os cônjuges falecidos mas muito lembrados em Girimunho e Histórias... ; o bebê em Mãe e Filha; o defunto misterioso em Terra Deu, Terra Come; a filha seguindo os passos da mãe morta em Sudoeste. A ligação entre vivos e mortos pode ser lúdica, mística ou mágica, mas nunca é menos que determinante no que vemos acontecer na tela.



A cidadezinha do Vale do Paraíba onde se passa Histórias que Só Existem Quando Lembradas podia ter saído de um romance de García Marquez ou de uma novela de Dias Gomes. Os moradores há tempos pararam de morrer e o cemitério está trancado a cadeado. Madalena e seu parceiro de comércio levam uma rotina repetitiva, marcada por hábitos entranhados, ranzinzices e os sinos da igrejinha local. Temos aí um exemplo acabado do neoarcaísmo em ação. O afastamento da realidade urbana tem um sentido muito distinto da época em que o Cinema Novo deslocava-se para o mundo rural para melhor diagnosticar as estruturas arcaicas do país. Agora o movimento rumo ao interior tem a marca de um certo fascínio pelo arcaico, um gosto pela defasagem. É como se no mundo dos velhos e das coisas antigas estivesse o frescor de uma nova poética. Indo até lá, é possível distanciar-se tanto da veloz banalidade do cinema de ficção dominante quanto do cansaço da expressão puramente documental.



Mas Histórias... vai adicionar um ingrediente especial a essa receita. A chegada de uma jovem fotógrafa vai não só mexer com a pasmaceira da vila, mas também estabelecer uma perspectiva complicadora para o neoarcaísmo. Rita é um claro alterego senão de Julia Murat, mas de artistas urbanos que se interessam por universos remotos como aquele. Ela usa uma câmera pinhole, equipamento fotográfico sem lente cujas primeiras versões eram conhecidas desde os tempos de Aristóteles. Ou seja, o neoarcaísmo tem seu comentário tecnológico com a volta à moda de um dispositivo rudimentar.



Rita não se intimida em pedir que os velhos da cidade posem para sua câmera. As fotos tampouco são realistas, mas recriações artísticas, meio fantasmais, do cenário que se oferece ao seu olhar. Que Rita não seja apenas uma exploradora do seu passeio pelo arcaico, mas acabe se deixando absorver por aquele mundo, é uma das muitas fragilidades bem-intencionadas que vejo no filme. Ao contrário de Girimunho, seu parente talvez mais próximo, Histórias... não supera a armadilha de uma dramaturgia “de cima para baixo”. Os diálogos muito formatados, a caracterização limitada da forasteira e a reverência do olhar da câmera sobre pessoas e coisas reduzem bastante o potencial de encantamento e mistério do argumento.



De qualquer forma, o filme ajuda a enxergar melhor uma tendência relevante do cinema brasileiro atual e fornece elementos para se observar suas possíveis contradições.

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